domingo, 10 de novembro de 2013

Tecnologia Social

Luz Natural

  • Escrevemos um pouco sobre o que é, qual a origem e quais as possibilidades da Tecnologia Social (TS). Tecnologia Social é uma expressão inicialmente cunhada para designar “Tecnologias para Inclusão Social”, atualmente ela dá significado a uma proposta que extrapola a ideia de inclusão social com suas discussões indo na direção de construir um novo paradigma tecnológico compatível com um modelo de desenvolvimento que não gere exclusões. 
Assim como no campo da EA, é possível identificar diferentes concepções sobre TS. Neder (2009) identifica duas vertentes que marcam as reflexões e ações de TS no Brasil. Uma delas é mais voltada para o processo tecnológico, onde atores diversos se unem para, em um processo de emancipação, construir soluções para as demandas postas, dentre estes atores se encontram os pesquisadores de TS e os próprios usuários da tecnologia (que são considerados a peça chave nesse processo para que se consiga desenvolver tecnologias verdadeiramente adequadas as demandas dos produtores/usuários). 
  • A outra vertente identificada está mais ligada ao produto, ou seja, ao artefato tecnológico que será produzido e trará algum benefício social. Esta segunda vertente frequentemente adota os procedimentos: identificar (ou supor) demandas de tecnologias em processos que desejam contribuir, desenvolver possíveis soluções tecnológicas para esses processos e levar tais soluções aos seus futuros usuários.
Em nosso entendimento a preocupação com o produto (seja ele um artefato tecnológico, um método ou um produto que será comercializado pela cooperativa) é válida, pois de pouco adianta determinado produto ser fabricado em um processo solidário se na hora que chega ao consumidor (ou na próxima etapa do processo produtivo) ele reproduz (ou induz a reprodução) dos mesmo valores que rejeitou em seu processo de produção. 
  • Dessa forma é muito importante que os processos de TS tenham muita reflexão sobre os seus produtos finais. Contudo, acreditamos que o mais rico nas reflexões que encontramos sobre tecnologia social são as reflexões sobre um processo de desenvolvimento tecnológico que leve a emancipação social.
Por esse motivo dedicamos nossa revisão bibliográfica sobre TS está focada nos autores que trabalham com uma concepção de TS voltada ao processo tecnológico. Para expor tal discussão, seguimos o caminho de descrever a TS de duas formas: pela negação da Tecnologia Convencional (TC) e pela sua construção a partir da revisitação das discussões em torno da Tecnologia Apropriada (TA). 
  • Quando descrita pela negação da TC, partimos de uma reflexão sobre a organização da produção em espaços e modelos solidários (cooperativas, fábricas recuperadas, e outros processos produtivos que se identificam com a economia solidária) onde a produção deve se orientar pela satisfação das necessidades básicas dos produtores e não pelo lucro individual de um proprietário do meio de produção. 
Dessa forma, argumenta-se que a Tecnologia Convencional é: 
  • Adequada aos processos de produção capitalistas, que tem como principal objetivo maximizar os lucros do proprietário da fábrica ou empreendimento produtivo, e 
  • Inadequada para processos solidários cujos objetivos são produzir e suprir as necessidades dos usuários com a divisão equitativa dos “frutos” produzidos. 
Nesse sentido, a Tecnologia Social é uma proposta de modelo tecnológico adequado para processos solidários de produção, construída com seus próprios usuários incorporando os valores necessários para produção solidária e propiciando processos de emancipação social.
  • Na descrição da TS pela revisitação da proposta de Tecnologia Apropriada iniciamos contando que a TA se origina (ainda sem esse nome) em experiências do inicio do século XX na Índia, quando foi proposto (por Gandhi) um modelo de desenvolvimento que se baseava em substituir a tecnologia ocidental por tecnologias que propiciassem aos aldeões uma vida plena (socialmente, culturalmente e politicamente). 
Essa proposta é retomada nas décadas de 1960 e 1970 quando dentre muitas denominações se destaca o nome Tecnologia Apropriada, e é descrita como a tecnologia que visava reduzir as desigualdades sociais causadas pelo desenvolvimento do modelo capitalista. 
  • Com a ascensão do neoliberalismo, as propostas de tecnologias com objetivos diferentes dos visados pelo mercado são deixadas de lado. Na década de 1990 as discussões em torno de tecnologias para produção com valores diferentes daqueles empregados na produção capitalista são retomadas; as discussões sobre o que não deu certo na TA são ponto de partida para a construção de uma nova proposta. 
Essa nova proposta está enraizada na ideia de que o desenvolvimento da tecnologia em processos solidários não deve seguir o modelo de desenvolvimento das tecnologias comuns, ao contrário, deve desconstruir os pressupostos que nossa sociedade carrega em relação à tecnologia. 
  • Dessa forma, as reflexões sobre TS tem como foco o processo (denominado de Adequação Sociotécnica - AST) de desconstrução sociotécnica dos valores da TC, e o processo de construção sociotécnica de novos valores adequados à produção solidária. 
Tecnologia Social: 
Pela negação da Tecnologia Convencional:
  • A Tecnologia Convencional é aquela aplicada nos processos de produção capitalista. Ela se constitui como um dos pilares de um modelo de organização da sociedade gerador de exclusões, servindo como seu motor (no que diz respeito em manter a “máquina” em movimento) e como seu combustível que alimenta esperanças de melhores possibilidades futuras com o progresso tecnológico. 
Nesse sentido, Furtado (2008) discorre sobre como a construção de uma ideologia do progresso, ao longo da revolução burguesa, passa a legitimar as estruturas de poder dominantes, substituindo o papel exercido anteriormente pela religião. 
  • O autor ainda expõe que a ideia de desenvolvimento se constrói a partir da ideologia do progresso e serviu de alavanca ideológica para difundir-se pelo mundo como o caminho para generalização dos benefícios desse desenvolvimento. 
Para Furtado (1981), o mesmo processo de desenvolvimento que nos países centrais generaliza o acesso da população aos bens que propiciariam um suposto bem-estar social, nos países periféricos agrava as desigualdades sociais, proporcionando que uma pequena parcela da população tenha uma qualidade de vida similar à dos países centrais enquanto a grande maioria da população não tem acesso aos supostos benefícios desse desenvolvimento (e o que é pior, sofrem com processos de desconstrução das particularidades de seus modos de vida). Tal processo de desenvolvimento é entendido como a generalização do modelo de produção industrial que empenha sua tecnologia para aumentar a produtividade. 
  • Em outras palavras, há uma construção ideológica em torno de um suposto caminho para levar o bem estar para todos os seres humanos. Tal construção legitima a disseminação de um modelo industrial que tem como ponto central uma tecnologia cujos objetivos são maximizar os lucros dos proprietários dos meios de produção. 
Um bom exemplo da noção de que essa tecnologia convencional é a única possível foi o episódio do acidente nos reatores da usina nuclear de Fukushima - Japão no inicio de 2011, após o acidente retomaram-se as discussões quanto à viabilidade de se utilizar a energia nuclear como fonte de energia. 
  • Nessa discussão, os questionamentos que emergiram foram quanto aos riscos da energia nuclear e a viabilidade econômica de sua substituição, não se discute a possibilidade de se substituir o modelo industrial altamente dependente de uma crescente geração de energia e uso de bens naturais por modelos de desenvolvimento que produzam sem a necessidade de um consumo exorbitante de energia.
Dessa forma, cabe uma breve descrição da visão marxista sobre a tecnologia. Em tal visão, no sistema capitalista, o desenvolvimento de tecnologias (que aumentem a produtividade) é fundamental para o aumento da “mais valia” (valor gerado com o trabalho que excede os custos da mão de obra ou da força de trabalho), consequentemente, para o aumento do lucro. 
  • Nessa concepção, as desigualdades sociais são consequência das relações de produção, onde os trabalhadores são privados dos meios de produção e para sobreviver são obrigados a vender sua força de trabalho, em troca de um salário, aos proprietários dos meios de produção, esses, por sua vez, se apropriam dos excedentes de produção. 
Nesse sistema, os proprietários dos meios de produção tem o poder de decisão sobre o processo produtivo e contam com o apoio do estado capitalista para coerção dos trabalhadores. Nessa concepção, a tecnologia tem a função de acelerar o processo de acumulação, isso leva a um aumento das desigualdades, aumentando a tensão entre as classes, e eventualmente gerando uma revolta da classe operária que levaria à revolução e à transformação do sistema em um sistema socialista (consolidado quando os meios de produção deixam de ter um “dono” e tornam-se públicos) (HUNT, 2005). 
  • Nesse sentido, Dagnino (2010) conta que empreendimentos solidários (tais como fábricas recuperadas e cooperativas de catadores) frequentemente são constituídos com a noção de que o uso de Tecnologia Convencional ajudaria o empreendimento em seu processo produtivo, já que agora os produtores detém o meio de produção e apenas se beneficiariam de tal uso. O autor questiona a concepção de que apenas a mudança da propriedade dos meios de produção, passando das mãos dos proprietários para a tutela dos trabalhadores, já seria suficiente para construir outro paradigma de produção. 
Para o autor, a propriedade dos meios de produção apenas define quem terá o controle e o poder de escolha sobre o processo produtivo, dessa forma, quando há um empresário, dono do meio de produção, ele escolherá a tecnologia que lhe será mais útil, ou seja, aquela que aumenta a produtividade sem permitir que o trabalhador compreenda o processo produtivo a ponto de questionar as decisões e a parcela do que foi produzido que é apropriada pelo empresário. 
  • A Tecnologia Convencional incorpora os valores necessários para manutenção da produção capitalista e se legitima pela crença na neutralidade da ciência, construindo a ideia de que com uma mudança na divisão social do trabalho, que distribua melhor os benefícios da produção, tal tecnologia, que seria uma parte dos meios de produção que agora seriam dos produtores, continuaria útil para aumentar a produtividade da sociedade mas ao invés de contribuir para concentração de renda contribuiria para a distribuição equitativa. 
Nesse sentido, Novaes (2005), ao estudar fábricas recuperadas, constatou que o fetiche em torno da tecnologia capitalista, ou seja, a crença que a tecnologia mais moderna é sempre a melhor, dificulta a transição do processo produtivo capitalista para um processo solidário, pois o uso de tecnologia capitalista mantém características como a hierarquização e segregação do processo produtivo e a ânsia de “atualizar” as tecnologias em uso dificultam processos de desenvolvimento de novas tecnologias mais apropriadas ao modelo de organização do trabalho desejado. 
  • Assim, para uma mudança do paradigma social, além da propriedade dos meios de produção, o paradigma tecnológico empregado nos processos de produção também deve ser alterado. A Tecnologia Social é proposta como uma alternativa à TC, tendo como principal objetivo a inclusão social daqueles atores excluídos e/ou marginalizados pelo sistema capitalista. 
Essa concepção de tecnologia parte do princípio que a sua construção deve se dar com os usuários da tecnologia (que em processos solidários de produção deveriam escolher qual tecnologia deseja utilizar), propiciando processos de apropriação dessas tecnologias que levam à emancipação dos usuários e a construção de formas únicas de produzir, que respeitem as particularidades locais e viabilizem a sobrevivência do empreendimento no mercado. (DAGNINO, 2010) 
  • Para Dagnino (2010), o uso da tecnologia convencional é incompatível com os valores de processos solidários de produção, por isso, seria necessário a adaptação ou construção de tecnologias para que atendam as necessidades da produção com valores solidários. 
Desta forma, Dagnino (2004) descreve como é a TC e seus valores, em seguida reflete como deveria ser uma tecnologia que não incorpore tais valores e seja adequada para produção em empreendimentos solidários. O próximos parágrafos são uma síntese dessa discussão. 
  • A TC poupa mão de obra mais do que o desejável, ou seja, ela diminui o número de pessoas necessárias para produção para além do necessário para viabilizar o empreendimento. Ela dita o ritmo de produção, é segmentada, pois não permite o controle do produtor direto sobre a produção, é hierarquizada, pois depende de que haja propriedade privada dos meios de produção e apropriação desigual dos bens produzidos, é alienante, pois não utiliza o potencial criativo do produtor direto, é ambientalmente insustentável, pois não contabiliza em seus custos de produção muitos dos danos causados ao ambiente (DAGNINO, 2004). 
O objetivo principal da TC é o aumento da produtividade que leve à maior acumulação de capital, o que faz de seu uso o causador de uma diversidade de problemas sociais, como, por exemplo e principalmente, o desemprego. Outra questão é o fato da TC ser desenvolvida nos países do Norte, com as especificidades de seus mercados, e serem absorvidas pelas empresas dos países do Sul de forma acrítica, impondo a estes países padrões e valores de países do Norte (NOVAES; DIAS, 2010). 
  • Conforme Dagnino (2004), a TS deve ser “adaptada a pequeno tamanho físico e financeiro”, “não-discriminatória” (não havendo discriminação de patrão contra o empregado), “liberadora do potencial e da criatividade do produtor direto” (já que o próprio produtor será um ator determinante no desenvolvimento dessas tecnologias), “viabilizadora de empreendimentos autogestionários” e “orientada para o mercado interno de massa” (no sentido de suprir necessidades regionais tais como alimentação). 
Além disso, ela deve ser capaz de viabilizar a inclusão social e permitir que empreendimentos autogestionários tenham possibilidades reais de competição contra o grande capital de forma que eles possam constituir uma alternativa econômica real.
  • Desta maneira, entender o conceito de TS pela oposição à TC, pressupõe compreender que a TC é viabilizadora da produção capitalista, portanto, causadora de exclusões sociais. Assim, a TC é inadequada para processos solidários e autogestionários de produção. Sendo assim, a TS surge como uma alternativa que tem o objetivo de viabilizar tais processos. 

Iluminação natural com garras PET

Sobre a Tecnologia Apropriada:
  • A Tecnologia Apropriada se apresenta como uma alternativa tecnológica adequada para pequenas comunidades, cooperativas ou pequenos empreendimentos produtivos. 
Essa proposta se afirma sobre o questionamento se tecnologias trazidas pelos processos de industrialização realmente trazem benefícios para processos produtivos que tem como características relações solidárias entre os produtores. Herrera (2010)7 conta como já no inicio do século XX havia o entendimento de que as tecnologias trazidas dos países do norte não eram adequadas para os países em desenvolvimento. 
  • Conforme o autor, Ganhdi em 1909 já tinha esta percepção e a incluiu no conceito “Sarovaya” que propunha o desenvolvimento dos povoados utilizando meios de produção, para satisfação das necessidades básicas, de propriedade das próprias famílias ou de cooperativas de famílias. 
Desta forma:
  • A base da luta contra a pobreza era o pleno emprego. O desenvolvimento moral e mental pleno do indivíduo era para Gandhi a suprema importância. Era essencial encontrar trabalho que desse a oportunidade de expressar-se e desenvolver inteligência criativa. 
  • A educação baseada no trabalho manual e na identificação e solução de problemas de relevância imediata era a ferramenta para desenvolver tal inteligência criativa. 
Em resumo, a autoconfiança, começando no nível dos povoados, a concentração nos problemas pertinentes imediatos ao invés de planos fixos a longo prazo, o fomento à inteligência criativa pelo desenvolvimento individual e social pleno através da desobediência civil não violenta e da cooperação eram o elementos centrais de sua aproximação ao desenvolvimento. 
O conceito de desenvolvimento de Gandhi incluía uma política de ciência e tecnologia explícita essencial para sua aplicação. (…). 
A insistência de Gandhi na proteção das habilidades dos povoados não significava uma conservação estática da tecnologia tradicional. Ao contrário, implicava a atualização das técnicas locais, a adaptação de tecnologia moderna às condições e ao ambiente da Índia e ao estímulo da pesquisa científica e tecnológica para identificar e resolver problemas pertinentes imediatos. 
  • Seu objetivo final era a transformação da sociedade hindu, porém através de um processo de crescimento orgânico a partir de dentro e não de uma imposição vinda de fora (HERRERA, 2010, p. 23–24) 
Para Herrera (2010), embora Gandhi nunca tenha utilizado o conceito Tecnologia Apropriada, este já estava claramente definido em sua doutrina social. O autor conta que a ideia de desenvolvimento de Ganhdi foi abandonada após a Índia ter assumido um projeto de desenvolvimento baseado na industrialização de grande escala baseada na indústria básica e pesada. 
  • Tal ideia só foi revisitada em meados da década de 1960, quando em um contexto diferente surgiram os nomes mais conhecidos para este conceito de tecnologia, tais como Intermediária e Apropriada. 
Nesse sentido, Dagnino, Brandão e Novaes (2010) trazem que Shumacher, influenciado pelas ideias de Ganhdi, cunhou a expressão “tecnologia intermédia”, e citam o autor, devido a seus projetos e sua obra, como conhecido por introduzir o conceito de TA no mundo ocidental. Assim, sobre a “Tecnologia Intermédia”, Shumacher propõe:
O desenvolvimento econômico em áreas de pobreza só pode ser fecundo quando baseado no que designei por “tecnologia intermédia”. Em última análise, a tecnologia intermédia será de uso intensivo de mão de obra e prestar-se-á a ser utilizada em estabelecimentos fabris de “pequena escala”. Mas tanto a "intensidade de mão de obra" como a "pequena escala" não implicam uma “tecnologia intermédia”. […] Tal tecnologia Intermédia seria imensamente mais produtiva do que a tecnologia nativa, mas também seria imensamente mais barata do que a tecnologia requintada, de uso altamente intensivo de capital, da indústria moderna (SHUMACHER, 1983, p. 103).
Desta forma, a TA surge como uma proposta de tecnologia adequada à realidade de grande parte da população dos países periféricos. A tecnologia desenvolvida nos países centrais é por natureza poupadora de mão de obra (devido aos seus processos históricos tinham uma relativa escassez de mão de obra que ficava cada vez mais cara, criando a necessidade de se minimizar as contratações para se manter ou maximizar o lucro) e induz processos de organização da produção que excluem seus produtores da “maioria dos frutos produzidos”. 
  • A ideia de uma tecnologia alternativa se fincou na necessidade de desenvolver tecnologias que atendessem às necessidades de produção dos países periféricos, onde havia fartura de mão de obra, uma distribuição populacional menos urbana e com particularidades culturais que não deveriam ser perdidas. 
Desta forma propõe-se o uso de tecnologias intensivas em mão de obra e que dessem conta da sobrevivência com a satisfação das necessidades básicas (com uma noção que o básico é uma vida plena nos âmbitos politico, cultural e econômico) dos seus usuários. 

O kit é uma tecnologia social ao alcance dos pequenos produtores. 
Ele possibilita uma ordenha manual com a mesma qualidade higiênica 
da obtida na ordenha mecânica.