quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Chá Santo Daime - Dimetiltriptamina

Por ser uma bebida produzida há muito tempo, o chá do Santo Daime 
aparece na história de diversas culturas e religiões assumindo 
outros nomes como ayahuasca.

  • A polêmica travada atualmente em torno do Culto ao Santo Daime é relativamente recente. É possível localizá-la a partir dos anos oitenta, quando o assunto começou a ganhar destaque no cenário nacional, em função de sua divulgação nos meios de comunicação de massa. Ela gira em torno da validade ou não do uso sagrado de substâncias psicoativas em rituais religiosos. Esse fato paira no imaginário nacional como verdadeira ameaça aos pilares da chamada cultura cristã-ocidental; como catalisador do medo ao desconhecido, ao estranho, ao exótico, por sua suposta possibilidade de ameaçar a ordem e corromper os bons costumes.
Por outro lado, e pelos mesmos motivos, apresenta-se a determinados segmentos sociais como uma promissora oportunidade para a revisão dos descaminhos que conduziram ao "labirinto" da racionalidade moderna. E, desde o principio, esta tem sido uma das características do Santo Daime: gerar discussões apaixonadas, dividindo o debate em dois extremos que tendem a radicalizar cada vez mais suas posições. Pois, diante dele, dificilmente fica-se indiferente.
  • O chá que recebe o nome de Santo Daime (também conhecido por Ayahuasca, Yagé ou Vegetal) faz parte da tradição cultural de várias nações indígenas da amazônia ocidental. É um produto da decocção de duas plantas nativas da região: um cipó (Banisteriópsis Caapi), conhecido por Jagube; e uma planta arbustiva (Psicótria Víridis), a Rainha da Floresta. Aos caules do cipó macerado, cujos principais alcalóides encontrados são a Harmina e a Harmalina, acrescentam-se as folhas da arbustiva, que contém principalmente Dimetil-Triptamina (DMT).
Tais alcalóides têm como característica o fato de serem rapidamente metabolizados e absorvidos pelo aparelho digestivo, sempre que ingeridos isoladamente, produzindo pouco ou nenhum dos efeitos psíquicos normalmente esperados. Isso se deve ao fato de que o organismo humano produz uma enzima (a Monoamina Oxidase - MAO) que neutralizaria a maior parte desses agentes psicoativos.
  • Entretanto, isso não ocorre devido a um "segredo" do Santo Daime, descoberto recentemente pela psicofarmacologia. Quando a análise das substâncias presentes na bebida produzida pela decocção das plantas foi realizada, revelou-se a presença de outro alcalóide (a Bcarbolina), cuja ação inibe a produção das enzimas de MAO, facilitando a ação dos demais agentes no organismo humano. Outra questão, relacionada aos efeitos psíquicos do chá, refere-se à existência de certo alcalóide que, segundo o psicofarmacólogo Elisaldo A. Carlini - da Escola Paulista de Medicina - possui uma estrutura molecular semelhante à de uma das substâncias produzidas pelo cérebro, cuja função é a de estabelecer o contato entre os neurônios para a realização das sinapses.
Especulando um pouco a esse respeito pode-se supor, por exemplo, que o aumento artificial dessa substância no cérebro pode levar o organismo a produzir o mesmo número de sinapses, em tempo menor do que o normalmente necessário para realizá-las. Tal possibilidade abre espaço para um conjunto de novas hipóteses que poderiam vir a contribuir para o aprofundamento dos conhecimentos acerca da mente humana, tanto no que se refere aos aspectos bioneurológicos, quanto aos psico-culturais.
  • Será que a alteração do Estado de consciência através da utilização do Santo Daime não provocaria mudanças na capacidade de raciocínio, de maneira semelhante a um computador que recebe uma placa adicional para aumentar sua velocidade de processamento das informações? Ou, talvez, seu efeito seria mais parecido com aquele obtido pela instalação de um disco rígido para aumentar a capacidade de memória do computador? Quem sabe ele não produziria alterações de fato na percepção ou nos sentidos? Ou ainda, não seriam as emoções e sentimentos os elementos mais envolvidos na experiência? Talvez, todas essas questões, simultaneamente? Sem dúvida, trata-se de um vasto campo, muito promissor para pesquisas transdisciplinares.
Evidentemente, não pretendo responder aqui a todas estas questões, mas apenas fazer algumas "provocações" para propor um debate, na tentativa de esboçar o assunto dentro de uma perspectiva abrangente, capaz de levantar algumas pistas para a compreensão da dinâmica do fenômeno em nosso contexto cultural. Afinal, o Santo Daime é apenas mais uma droga que dá "barato" ou, realmente, trata-se de um fenômeno religioso peculiar que, como tal, deve ser entendido e respeitado?

Breve histórico:
  • Levando em consideração essa preocupação, farei, inicialmente, um breve histórico das origens do culto e de sua trajetória para, em seguida, introduzir algumas questões que poderão vir a contribuir para o debate acerca da validade ou não de tais experiências religiosas em nossa cultura.
O Santo Daime foi criado em 1930 por Raimundo Irineu Serra - o Mestre Irineu - a partir de um sincretismo realizado entre o pensamento xamânico dos povos autóctones da região amazônica, o pensamento cristão ocidental (representado pela tradição esotérica da "Igreja Primitiva", aliada a alguns componentes do que se convencionou chamar de "catolicismo popular") e por uma forte influência da concepção oriental sobre a lei do Carma (a concepção da vida como um ciclo de reencarnações espirituais). Constituído a partir dessas três influências básicas, o Santo Daime afirma-se enquanto instituição religiosa capaz de impor determinado conjunto de valores morais, normas sociais e padrões de comportamento em regiões onde, ainda hoje, vigora a "lei da selva".
  • Antes dele, vários outros "centros" e "casas" espirituais já praticavam diferentes formas de sincretismo religioso com a Ayahuasca. Isoladas nos altos rios da Amazônia Ocidental, distantes dos centros urbanos e de qualquer tipo de assistência estatal, as práticas xamânicas proliferaram na periferia de diversas comunidades tanto peruanas (Iquitos, Pucalpa e outras), quanto brasileiras (Brasiléia, Sena Madureira, Xapuri e outras), particularmente durante o período de declínio do primeiro ciclo da borracha (entre 1913 e 1940).
Observa-se, nesse período de retração do mercado da borracha, a incorporação de determinados elementos dos sistemas culturais indígenas, com suas crenças religiosas e sua concepção anímica do universo. Vários estudos mostram que essas manifestações de origem xamânica - que se popularizaram, sob a denominação genérica de "curandeirismo" - colocavam-se como prática sincrética alternativa, capaz de satisfazer aos anseios e necessidades de toda uma população de "deserdados da floresta".
  • Por essa época, os bolsões de seringueiros que se formaram ao redor de Rio Branco - a capital do então Território Federal do Acre, constituíram-se no cenário propício para a gestação do culto que, desde o princípio até meados de 1940, sempre manteve uma relação tensa e tumultuada com o Estado. Nesse período, a simples prática de qualquer tipo de "curandeirismo" já era considerada como motivo justo e legal para a repressão policial. O que dizer, então, quando era associada ao uso de plantas desconhecidas e de origem indígena ?
Ao contrário do caminho trilhado pelos demais "curandeiros" da região, (que optaram por sincretizar as práticas xamânicas ao catolicismo e às “religiões de possessão”), Mestre Irineu funda a Igreja do "Alto Santo" (em Rio Branco-AC), filiando-se ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento - de S. Paulo. Com isso, ele abre um novo caminho dentro das práticas religiosas até então existentes.
Em fins dos anos sessenta, filia-se à ordem Rosa-Cruz, desligando-se do Círculo Esotérico no início de 1971,pouco antes de falecer. Sua trajetória de vida ‚ exemplar e repleta de episódios que refletem a epopéia clássica da iniciação xamânica (Cf. Eliade: 1951). Porém, ao enveredar por esse caminho singular, criando uma nova doutrina capaz de romper determinadas barreiras culturais, Irineu assume grande importância, influindo sobre o destino dos demais grupos de "huasqueiros" existentes na região.
  • Após a morte do Mestre (06/07/1971), o "Alto Santo" entrará em um período de crise. Segundo um grupo de adeptos, o comando dos "trabalhos" fora deixado por Mestre Irineu para Leôncio Gomes (tio de sua esposa - Da. Peregrina). Mas, passou a ser contestado pelo grupo liderado por Sebastião Mota Melo.
Este, que entrara para o culto no princípio da década de sessenta, contava com o apoio de cerca de cem pessoas, que o seguiam em função de sua expressiva liderança carismática. A disputa de comando prosseguiu até fins de 74, quando o "padrinho" Sebastião (como era tratado por seus liderados) retirou-se da igreja do "Alto Santo", levando consigo seu grupo para organizar o que viria a ser a "Colônia Cinco Mil", em uma gleba mais distante da cidade. Tal fato inaugura uma nova fase, uma outra etapa na existência do culto.
  • Rapidamente, a Colônia Cinco Mil prospera, atraindo novos adeptos que iriam mudar o perfil do daimista tradicional. Eram, principalmente, jovens de classe média provenientes dos grandes centros urbanos que migravam para lá em busca de uma alternativa de vida mística e ligada à natureza. Idealistas, visionários, ou simples curiosos, trouxeram consigo seus sonhos, hábitos e costumes.
Desses, alguns retornaram às suas cidades, já na década de oitenta, com a missão de fundar novas igrejas do culto; ao mesmo tempo em que o "padrinho" liderava seu povo em direção ao seringal Rio do Ouro e, posteriormente, para o centro da floresta, ocupando o seringal do Mapiá (no Amazonas), com a finalidade de acomodar um número ainda maior de adeptos que para lá afluía.
  • No princípio dessa década, simultaneamente ao duplo movimento realizado pelo grupo, primeiro em direção ao centro da floresta e, em seguida, em direção aos principais centros urbanos do país, o grupo de Sebastião passa a ter problemas com a Polícia Federal e a repressão estende-se aos demais grupos daimistas, culminando com a proibição do uso da bebida em seus rituais, em 1985.
Por cerca de seis meses o Santo Daime foi ilegalmente incluído na lista de substâncias proscritas da Divisão Nacional de Vigilância Sanitária - DIMED. A ilegalidade foi cometida por precipitação do órgão, ao incluir o Daime na sua listagem de substâncias proscritas, sem realizar a prévia e necessária consulta ao Conselho Federal de Entorpecentes - CONFEN.
  • Uma vez acionado, o CONFEN instituiu um Grupo de Trabalho composto por profissionais e representantes das áreas mais diretamente envolvidas, com a finalidade de realizar um estudo abrangente do assunto e emitir um parecer sobre a questão. Uma de suas primeiras providências foi retirar a bebida da referida listagem, restabelecendo a situação anterior à proibição.Este estudo foi realizado entre 1985 e 1987, concluindo pela ausência de fatos que comprovassem quaisquer danos psíquicos ou sociais provocados pelo uso ritual da bebida. Ao contrário, destacava até certa rigidez excessiva na preservação das normas e valores morais validados por nossa cultura e recomendava, ainda, a realização de novos estudos que aprofundassem o conhecimento existente acerca do tema.
Sem dúvida, estamos diante de uma forma de tratamento "sui generis" da questão; mas, que se coloca perfeitamente de acordo com a abordagem da tradição xamânica regional ao ser considerada como mais uma "planta de poder". Trata-se de um enfoque abrangente, que leva em consideração os aspectos culturais do culto, distinguindo-o claramente das demais formas de consumo profano e indevido dos psicofármacos.
  • Depois de encaminhar seu relatório ao CONFEN, o Grupo de Trabalho dissolveu-se e, no final do mesmo ano, o Conselho do órgão reuniu-se para examinar o documento, aprovando-o em sua totalidade. Desta maneira, atualmente não existe nenhum impedimento legal em relação às práticas do culto ou ao consumo ritual da bebida. Apesar das pressões contrárias, penso que esta tenha sido uma decisão sábia e correta, que reverterá em benefício do conjunto da própria sociedade brasileira.
Composição Química:
  • A dimetiltriptamina (N,N-dimetiltriptamina, onde: N,N-dimetil-1H-indolo-3-etanamina), cuja abreviatura é DMT, é uma substância psicodélica (grupo de agentes químicos também denominados como psicodislépticos), termo proposto por J. Delay (traduzido como modificadores ou perturbadores do sistema nervoso central) pertencente ao grupo das triptaminas, semelhante à serotonina, e/ou à melatonina como sugerem alguns estudos, em especial, do Dr. Rick Strassman na Universidade do Novo México em 1990.
Tem como fórmula molecular C12H16N2 e peso molecular 188.27, ponto de fusão entre 44,6 e 46,8 °C e ponto de ebulição entre 60 e 80 °C de acordo com o índice de Merck. Sua dose ativa em forma de base livre é de aproximadamente entre 15 mg a 60 mg e dura pouco menos de uma hora.
  • É encontrada in natura em vários gêneros de plantas (Acacia, Mimosa, Anadenanthera, Chrysanthemum, Psychotria, Desmanthus, Pilocarpus, Virola, Prestonia, Diplopterys, Arundo, Phalaris, dentre outros), em alguns animais (Bufo alvarius possui 5-Meo-DMT, um alcalóide bastante parecido em estrutura e em propriedades químicas) e também produzida pelo corpo humano. 
É o princípio ativo da mistura do ayahuasca, utilizado nos rituais do Santo Daime e do vinho de Jurema e é bem conhecida por índios brasileiros e da América do Sul em geral. Sua propriedade psicodélica tem efeito curto e intenso quando fumada em forma de base livre. Na mistura do ayahuasca e talvez de algumas formas de preparação da jurema onde a concentração do elemento ativo é relativamente bem menor que forma de extrato de DMT, seu efeito é menos intenso e mais duradouro e torna-se ativo oralmente por conta de um IMAO (inibidor da monoaminoxidase) que também pode ser encontrado in natura em diversas plantas.(Banisteriopsis, Peganum).

Dimetiltriptamina
(C12H16N2)

Triptaminas relacionados :
  • Metiltriptamina
  • Etiltriptamina (NET, isômero)
  • Metilisopropiltriptamina (MIPT)
  • Dietiltriptamina (em vez dos dois -metil, dois -etil)
  • 2,N,N-Trimetiltriptamina (2,N,N-TMT, mais um metil no carbono 2)
  • 4-Metoxi-dimetiltriptamina (4-MeO-DMT, mais um metoxi no carbono 4)
  • Bufotenina (mais um hidroxi no carbono 5)
  • 5,N,N-Trimetiltriptamina (5,N,N-TMT, mais um metil no carbono 5)
  • 7,N,N-Trimetiltriptamina (7,N,N-TMT, mais um metil no carbono 7)
No corpo humano:
  • O DMT é sintetizado pelo corpo humano. Não existem ainda respostas conclusivas sobre as funções deste DMT interno, tão pouco sobre o órgão responsável por esta produção - função especuladamente dada à epífise, conhecida como glândula pineal, mas há, no meio científico, uma série de apontamentos e teorias. Sabe-se que as quantidades de DMT produzidas no cérebro são reguladas pela MAO (monoaminoxidase) e este processo é coadjuvante nos estados alterados de percepção e consciência criados pelo consumo (oral, intravenal ou por vias aéreas) de DMT externo.
As moléculas de DMT são similares às moléculas da Serotonina e se encaixam nos mesmos receptores do cérebro.
  • Muito se tem falado sobre possíveis funções ansiolíticas desta substância, quando produzida dentro do cérebro humano. Há uma diversidade de pesquisas e investigações sobre o tema, entre os quais a de maior destaque foi desenvolvida pelo psiquiatra estadunidense Rick Strassman, pioneiro no estudo e testes clínicos com DMT em seres humanos, após mais de 20 anos de moratória científica sobre substâncias psicodélicas, entre elas o LSD - substância semi-sintetizada, mescalina - obtida do cacto peiote, e psilocibina - oriunda de algumas espécies de cogumelo, também da classe das triptaminas, com estrutura química muito próxima ao DMT.
É também um neurotransmissor que se encontra em todos os seres humanos, e tem um papel fundamental em todos os casos de estados de percepção incomuns. Este neurotransmissor encontra-se no cérebro, no sangue, nos pulmões e noutras partes do corpo humano. Existe forte evidência que aponta para a glândula pineal ("o terceiro olho" nas tradições esotéricas), localizada no centro do cérebro, como sendo a principal fonte do DMT humano. Para além de se encontrar nos seres humanos, o DMT também pode ser encontrado em todos os mamíferos e numa variedade de plantas

A opinião dos especialistas:
  • Nesse sentido, é interessante levantar a opinião de alguns estudiosos do assunto. Em suas pesquisas, o médico e psico-farmacólogo americano Andrew Weil, por exemplo, sugere que as diferentes técnicas utilizadas para alterar a consciência corresponderiam a uma pulsão própria da natureza humana, a um valioso impulso "para satisfazer uma necessidade interna de experimentar outros modos de consciência...". Para referendar sua posição em defesa da tese do impulso natural, ele recorre ao exemplo das brincadeiras cinegéticas como recurso, utilizado espontaneamente por crianças, para experimentar diferentes estados de consciência. Weil afirma ser irracional o modo de pensar a questão, adotado pela Associação M‚dica Americana e o Instituto Nacional de Saúde Mental, que tenta reprimir sua expressão em indivíduos e na sociedade. Ele chega a ser radical quando diz que este poderia ser "um ato psicologicamente danoso para as pessoas e evolucionalmente suicida para a espécie".
De fato, existem vários aspectos controvertidos e discutíveis em suas posições bem como, de resto, sobre a questão como um todo. Contudo, como os próprios especialistas no assunto não possuem parâmetros minimamente consensuais para lidar com a questão; penso que, além de ter sido precipitada, a proibição pura e simples de tais manifestações, provavelmente conduziria à gestação de problemas de ordem mais complexa e de difícil solução.
  • Primeiramente, parece-me uma tarefa urgente sistematizar e,aprofundar os estudos existentes, adotando-se uma perspectiva transdisciplinar capaz de abordar a problemática de maneira abrangente. Sua complexidade exige um debate a ser travado não apenas entre diferentes teorias de uma mesma ciência, mas sobretudo, entre os vários campos do conhecimento humano. Num debate em que devem se manifestar, minimamente, as ciências biopsicoantroposociais.
Em segundo lugar, é de fundamental importância a adoção de uma postura desprovida de preconceitos, que podem acabar agravando ainda mais a situação e criando novos e imprevisíveis problemas.
  • Pois, a prática tem demonstrado que, além de não resolver a questão a que se propôs, a postura repressiva (quando adotada pelo Estado) acaba fomentando outras questões, estas sim, uma ameaça concreta à ordem social; como é o caso, por exemplo, do perigoso fenômeno representado pelo narcotráfico.
Resta, ainda, a necessidade de adotar uma posição de humildade, assumindo a insuficiência dos estudos existentes sobre estas questões. Postura que pode ser observada mesmo entre os especialistas. Por exemplo, falando sobre o tratamento psicoterapêutico mais adequado para os usuários de drogas em geral, Claude Olievenstein – um respeitado estudioso do assunto - é da opinião de que todos os meios são válidos, desde que possuam mecanismos que revalorizem o indivíduo.
  • Segundo suas palavras, "para isso todos os meios são bons, desde o charlatanismo até a ortodoxia freudiana, de acordo com o tipo do paciente e a personalidade do terapeuta.".Nesse sentido, sua abordagem é pragmática, reconhecendo inclusive a validade do trabalho de recuperação de drogados realizado pelas "Free Clinics" (nos E.U.A.) e relativizando a discussão das questões de ordem teórica a respeito.
Reconhece, sobretudo, a importância da existência de um grupo de apoio (tenha ele o caráter terapêutico, religioso ou de ajuda mútua) capaz de fornecer um código de conduta prática e moral, diante do problema. E são esses grupos que, na realidade, têm conseguido maior êxito no tratamento e recuperação de drogados. Dentro dessa perspectiva, o fenômeno do Santo Daime reveste-se de características inusitadas em nossa sociedade, por se tratar de um grupo que fornece vários elementos para uma reflexão mais profunda sobre as formas de controle social do uso de psicoativos.
  • O fato de sacralizar a bebida, estabelecer normas de conduta ritual e adotar rígidos padrões éticos e morais, todos eles cumpridos com extrema disciplina, oferece-se como um interessante "laboratório" para a observação e o aprendizado de alternativas para lidar com a questão, sem que seja necessário recorrer à repressão. Em seu estudo sobre o Santo Daime, o antropólogo Edward MacRae destaca a importância dos mecanismos de controle social usados no culto ao Santo Daime, durante os rituais e fora deles, no sentido de propiciarem uma forma de utilização positiva de tais substâncias.
Se suas observações estiverem corretas, o mal-estar provocado pela existência desse culto seria suscitado pelo fato de que o Santo Daime apresenta-se como verdadeiro paradoxo diante do modo tradicional de pensar os estados alterados de consciência em nossa sociedade. Diante dessa posição torna-se lícito perguntar até que ponto o controle social espontaneamente adotado pelo grupo não seria o maior responsável pela manutenção de sua saúde mental e de sua própria existência enquanto grupo? Quais as conseqüências de uma intervenção repressiva do Estado? Em que medida tal procedimento traria benefícios ou malefícios ao grupo e à sociedade como um todo?

Breve cartografia do imaginário:
  • Para avaliar melhor e poder responder com maior segurança a estas questões, seria interessante abordar rapidamente alguns aspectos centrais do culto, numa tentativa de compreender o significado simbólico e ritual da bebida e de suas práticas religiosas. A começar pela forma como é interpretada a experiência mística vivida durante as cerimônias. O êxtase propiciado pelo ritual de beberagem recebe o nome de "miração". Algumas “mirações” são consideradas viagens ao Reino Divino (o Astral) com a finalidade de ter acesso à realidade sagrada. Assim, o Astral é um lugar possível de ser visitado durante o voo extático da alma - uma das formas de representação da miração.
Esse Território Sagrado constitui-se numa espécie de Olimpo onde habitam os seres divinos - uma profusão eclética de "entidades" organizadas hierarquicamente, sob o comando supremo do General Juramidam - O Mestre Império (figura sincretizada com a imagem de Jesus Cristo). Ele é o Ser Divino que habita a bebida (o chá de Santo Daime) e o Senhor supremo desse "Panteão Amazônico". Trata-se de um universo divino invisível e paralelo ao nosso, um "domus" de perfeição e modelo ideal a ser atingido a cada “miração”, dependendo do merecimento espiritual de cada um.
... o domus perfeito, o arquétipo do lugar sublime, é um resumo plural do que um único indivíduo não pode realizar ... O que uma única pessoa não pode possuir (juventude, beleza, êxito, inteligência, encanto, etc.), um conjunto o assume.
Para a irmandade, a partilha do astral assume, acima de tudo, um valor territorial que concentra sobre um coletivo qualidades que raramente são encontradas em um só indivíduo; constituindo-se, assim, a metáfora espacial da União Mística. Esse espaço molda coercitivamente os hábitos e costumes cotidianos que, por sua vez, permitem uma sólida estruturação comunitária. A espacialização da “socialidade”, observada nas descrições do altral, atua como antídoto em relação ao angustiante devir do tempo, constantemente reiterado, principalmente, pelas “mirações” que envolvem experiências de morte/renascimento. A realidade que emerge dessa “socialidade” aponta, como referências exclusiva, o tempo presente.
A espacialização é o tempo em retardo, é o tempo que tentamos refrear, e daí a importância da ritualização na vida do dia-a-dia, que, pela repetição, representa e mimetiza o imutável... É aí que deve ser buscado o apego do fundamento afetivo ou passional que liga o indivíduo ou grupo ao território, qualquer que seja...
A partilha imaginária e ritualizada do território sagrado permite aos adeptos a subjetivação da história e a supressão do caráter histórico do devir, proporcionando os meios necessários à reatualização do Mito do Eterno Retorno, através da recuperação do tempo e do espaço cotidianos em bases sagradas.
Dessas imagens emergem a idéia dos arquétipos do Grande Pai Criador e da Terra Prometida: seria o paraíso perdido o alvo ideal a ser atingido durante as “mirações”?
  • Cada "trabalho" com o Santo Daime, cada ritual de beberagem, é considerado como uma lição dentro do processo de aprendizagem dos adeptos. A trajetória de cada um dentro do culto está vinculada à sua caminhada espiritual nesta e em outras vidas passadas. Alguns daimistas são considerados a reencarnação de certas divindades e o encontro com o Santo Daime é visto como o atendimento a um chamado seu. Desta forma, são todos predestinados, escolhidos pelos deuses. Como se pode observar, a idéia do avatar é uma imagem recorrente dentro da doutrina.
Certa vez, recolhi um relato que dava conta da possibilidade dos participantes "morrerem" durante um ritual e outro espírito assumir o controle de seu corpo, sem que os demais participantes sequer se apercebessem do fato. É a reiteração da idéia de morte-renascimento, da "passagem", da transformação espiritual, tantas vezes encontrada nos relatos etnográficos sobre os processos xamânicos de iniciação. Mas, somente os espíritos mais evoluídos assumirão suas missões, sempre recebidas em “miração” diretamente do Astral, a exemplo do processo de iniciação de Mestre Irineu. Como cada um encontra-se em um nível de desenvolvimento correspondente ao seu grau de espiritualidade, não se postula a igualdade como valor; ao contrário, legitimam-se as diferenças.
  • Nas entrevistas realizadas observa-se a existência de uma dada concepção de alma, de experiências de morte/renascimento e da idéia de “vôo da alma” ao separar-se do corpo, da crença na possessão espiritual e, invariavelmente, a leitura religiosa e “fantástica” de todas essas vivências. A idéia de vôo da alma, de abandono do corpo, revela a importância de “duplo” na vida social. Quanto a esse aspecto, Maffesoli afirma que:
"...é pela duplicidade mais ou menos consciente que os indivíduos aparentemente integrados na ordem social preservam um tanto para si que lhes permite sobreviver às varias imposições dessa ordem..., que permite a resistência astuciosa à injunção da identidade que nos obriga a ser isto ou aquilo, operário, intelectual, homem, mulher, etc...."
Ainda segundo Maffesoli, tal astúcia pode ser considerada como uma estrutura antropológica capaz de assegurar um escudo contra as agressões dos poderes instituídos; pois, é justamente nessa possibilidade mágica de existência do "duplo" que reside o rico espaço para a representação de papéis (para o espaço da "persona"). Esse escudo atua como espaço protetor contra o espaço linear de construção histórica da individualidade. Ele revela:
“... O conflito entre a prática societal que engendra instituições, controle, dominação e o surrealismo empírico que se oferece como concretude; o primeiro remete à ordem da moral, o segundo a uma expressão ética que ajuda a viver o dia-a-dia, através de um imaginal luxuriante e desordenado. Em regra geral, é o primeiro que, graças à ciência oficial, é retranscrito na historiografia, mas é certamente o segundo que assegura a permanência social, ao abrigo de várias máscaras e através de diversas astúcias.”
A dimensão fantástica que assume a realidade cotidiana, a partir da crença no astral, coloca-se como uma alternativa contra o processo de uniformização racionalizadora levada a cabo pela coerção das ideologias do progresso, incapazes de absorver as zonas de opacidade que margeiam a tessitura das relações sociais. Desse modo fantástico de pensar emerge um espaço capaz de integrar a "anormalidade", a "loucura" e o "caos" que emergem das incertezas do cotidiano, tornando-o minimamente aceitável.
  • O fantástico encontrado invariavelmente nas entrevistas pode ser considerado excepcional somente dentro de uma perspectiva universalista, racional e asséptica do mundo; na realidade, essas histórias constituem o substrato dos mitos que são revividos e atualizados a cada trabalho, desempenhando um papel-chave na abertura das portas para uma comunicação mais densa e, ao mesmo tempo, fluida, que expressa a tentativa de escapar à angustiante certeza do tempo que passa. O ritual é um recurso utilizado como possibilidade de regeneração do tempo ao reatualizar a cena mítica original.
O crescimento do culto no sudeste do país, por exemplo, não obedece a nenhuma estratégia de planejamento. Encontra-se sujeitado à “vontade superior” e ao acaso das conversas informais e das "fofocas" que são, de fato, o vetor das relações entre as pessoas em suas práticas cotidianas, definindo alianças e inimizades, simpatias e antipatias. A trama originada desse jogo organiza a troca, define a densidade de compromisso das relações e seus parceiros, numa disputa de muitas potências que ora se aliam, ora se opõem, formando um mosaico de relações fluidas, que tendem à permanente fragmentação na medida em que o culto cresce.
  • Também é interessante observar a forte tendência à centralização do poder baseado no carisma do comandante, fato que, geralmente, acaba conduzindo o grupo a um processo de cisão, após seu falecimento. Possivelmente, essa característica conduzirá a Igreja a um novo processo de disputa de poder e de conseqüente divisão, após a morte do padrinho Sebastião. Fato ocorrido recentemente com a Igreja do Céu do Mar, em São Conrado, quando um dos frequentadores entrou em disputa com seu comandante e retirou-se para fundar uma nova Igreja (a Rainha do Mar, em Pedra de Guaratiba).
No geral, nenhum dos adeptos discorda da moral expressa pela doutrina que, inclusive através dos hinos, prega o respeito aos irmãos e alerta para os perigos e venenos da língua (referência direta às "fofocas"); no particular, o que acaba vigorando com maior intensidade são as opiniões e impressões sobre o comportamento ético de tal ou qual irmão, passadas à boca pequena nos pequenos círculos de amizade, dando origem às cizânias. É nesse desdobramento do social entre a versão oficial genérica, uniformizadora, centralizadora e controladora  e a versão oficiosa - particular, fragmentária e policêntrica - que emerge com maior clareza o ‘non-sense” do social. Essa duplicidade confere uma outra dimensão aos fatos, podendo ser interpretada como uma forma de manifestação da resistência a uma existência unidimensional e "monadizadora"; como uma manifestação de astúcia a uma dada ordem social. Como nos lembra Maffesoli:
... em face de uma gestão da existência que é sobretudo linear, planificada, cheia de sentido e racional, o duplo introduz a descontinuidade, o non-sense, a acentuação do presente...  
A rica e densa concretude do cotidiano, observada nas relações dos devotos do culto, permanece refratária aos esquemas de análise positivistas. Isso ocorre porque tais manifestações não se esgotam numa causalidade ou finalismo capaz de lhes conferir um significado lógico. Ao lado de um social simplificador e redutivo, existe sempre uma “socialidade” multiforme, vivida de uma forma mais ou menos intensa através do recurso à teatralidade. O primeiro, enquanto produto de uma construção lógico-racional, é unidimensional; enquanto que, a segunda, é a própria expressão de uma vigorosa resistência, de uma vontade de viver, de uma potência de vida (cf. Nietzsche) tanto individual, quanto social.Trata-se de duas formas de análise que têm por base, de um lado, o pensamento lógico/racional/empírico; e, de outro, o pensamento simbólico/mitológico/mágico. O primeiro controla, mas atrofia o pensamento; o segundo, não só o alimenta, mas também confunde. Buscando compreender a relação entre ambos, evito privilegiar um ou outro. Sobretudo, em concordância com o que nos propõe Edgar Morin (1986), fiz minhas as suas palavras, quando afirma não acreditar:
...numa superação totalizante que englobaria harmonicamente um e outro. O que posso e quero considerar é, em contrapartida, o desenvolvimento de uma racionalidade que reconheça a subjetividade, a concretude, o singular, e que trabalhe com eles; é o desenvolvimento autocrítico da tradição crítica que reconheça não só os limites da racionalidade, mas os perigos sempre renovados da racionalização, isto é, da transformação da razão em seu contrário; (buscarei) é o desenvolvimento de uma razão aberta, que saiba dialogar com o irracionalizável...
Procurei despir-me dos preconceitos e adotar uma abordagem fenomenológica para poder penetrar nesse imaginário e captar uma outra lógica, capaz de desvendar os mecanismos mentais e espirituais que operam durante os rituais. Lá, cada participante desempenha determinado papel a fim de propiciar o surgimento das condições necessárias à chegada das "energias" invocadas pelos hinos; pois, somente a ação da bebida não seria suficiente para garantir a chegada da "força" e da "luz", das energias responsáveis pela miração. Aqui, todos os detalhes do ritual são voltados para o objetivo maior de atingir o êxtase, com a finalidade de estabelecer contato com o universo sagrado; particularmente o canto e o bailado (importantes técnicas que, juntamente com a bebida, possibilitam a alteração dos estados de consciência).
  • Estas "viagens" estão sujeitas a muitos perigos e ameaças - representados pelas "peias" (que abordarei a seguir) - e que se constituem em fonte geradora de permanente ansiedade pela possibilidade de dispersão, ou mesmo, de desagregação do Ego, colocada como "prova", pela Iniciação: a possibilidade de passar por uma experiência simbólica de morte e renascimento espiritual. Penso que, além de potencializar o processo de alteração da consciência, o ritual também contribui para o processo de organização da experiência, minimizando o medo e o pânico que, por vezes, se instauram numa situação como esta em que se está diante do desconhecido; diante da possibilidade de se entrar em contato com o as questões mais profundas do ser: a dor e a morte... o tempo.

Fiéis participam de culto do Santo Daime na igreja Céu dos Ventos 
em Haia, na Holanda