sábado, 28 de fevereiro de 2015

As Relações entre Sociedade e as Ciências

Projeto da biodiversidade vai a comissão geral com várias polêmicas em aberto. Deputados brasileiros ligados ao agronegócio querem incluir no projeto regras sobre pesquisas com sementes.

  • A relação entre o homem e o ambiente que o circunda sempre o instigou. Em tempos remotos, a interpretação dos fenômenos naturais era tomada como mítica, obscura, sagrada ou revestida de medo. Com a evolução, sobretudo da ciência e das técnicas, o homem passou a entender estes fenômenos e a usá-los ao seu favor. 
Se a explicação do porquê de uma má colheita era conferida outrora à falta de sacrifícios e preces para deuses da fertilidade, hoje é atribuída ao baixo índice de sais minerais e vitaminas contidas no solo, por exemplo. A ciência e a técnica embrenharam-se em espaços antes ocupados pela religião e pelo medo.
  • Se, por um lado, o avanço da ciência e da técnica trouxe inúmeros benefícios que favoreceram o crescimento da espécie humana, por outro lado, semeou e fortaleceu a visão dicotômica homem versus natureza, na qual o homem se vê como manipulador do meio em que se insere. Esta visão provoca efeitos importantes na maneira em que o homem se relaciona com seu entorno.
Para Gonçalves (1996), no mundo ocidental há duas vertentes de percepção acerca da natureza. A primeira vertente é a antropocêntrica, que percebe a natureza como hostil, agressiva, na qual impera a lei da selva. Toma-se a natureza como um ambiente de luta, no qual caberia ao Estado impor as regras para a lei e a ordem, em oposição à barbárie, à selvageria e ao caos. A segunda vertente é a naturalista, que entende a natureza como expressão da bondade e da harmonia e os homens como destruidores deste equilíbrio. Ambas, ainda que simplistas, resultam de um ponto de partida comum: a dicotomia entre o homem e o meio que o cerca. 
  • Entender de que forma se deu a relação entre o homem e seu entorno, bem como as implicações derivadas desta relação auxilia a compreensão, em última instância, dos processos de institucionalização e regulação ao acesso e uso dos recursos naturais e, por extensão, da biodiversidade, pois entendida como uma derivação dos recursos naturais.
Do desencantamento da natureza ao “verdejar” da sociedade:
  • A evolução da relação homem-natureza é marcada pela subjugação da natureza pelo homem. Ainda que esta dominação não seja absoluta, o homem, observando a natureza, aprendeu a se beneficiar dela ampliando suas possibilidades de se alimentar, se deslocar, se fixar, se proteger e de dominar outros povos. 
Um exemplo emblemático é o domínio das técnicas de agricultura, durante a Revolução Neolítica, que resultou na domesticação de plantas e animais. Esta manipulação de plantas e animais viabilizou a fixação de grupos humanos anteriormente nômades. Assim, nascia o berço das antigas civilizações (COOK, 2005; OLIVEIRA, 2002).
  • Para Milton Santos, a existência do homem no planeta leva a uma constante redescoberta da natureza, e assim, desde o fim de sua história natural e criação da natureza social em um processo de “desencantamento do mundo, com a passagem da ordem vital a uma ordem racional” (SANTOS, 1992, p. 96).
Adorno e Horkheimer em sua obra Dialética do Esclarecimento, de 1947, igualmente discorrem desse processo de descoberta/dominação/desencantamento da natureza pelo homem.De forma que, muito antes da racionalidade advinda da ciência moderna constituir-se um meio de intervenção nos processos naturais, o homem já buscava e acreditava interferir nos processos naturais por meio de feitiços ou outras ações não cientificamente comprovadas. Segundo os autores:
O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. [...] Muito cedo deixaram de ser um relato para se tornarem uma doutrina. Todo o ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 20).
Assim, a intenção de desencantar a natureza já existiu muito antes aos meios efetivos para concretizar a dominação. O que o conhecimento científico possibilitou em termos concretos, já estava presente no mito de domar as forças da natureza (DUARTE, 2002). Entretanto, como afirmaram Adorno e Horkheimer (1985), a ciência foi mais astuciosa do que a magia.
  • A relação homem-dominador versus natureza-dominada é questionada por Gonçalves (1996) quando se aprofunda na essência desta interação. A expressão “o homem domina a natureza”, de fato é uma afirmação que só procede quando se apreende o homem como não natureza. O que, na visão do autor, seria uma verdadeira contradição, pois o homem também é parte da natureza; portanto, como pensar em o homem dominando a natureza?
Essa visão de natureza separada do homem é característica do pensamento dominante no mundo ocidental, cuja matriz filosófica advém da Grécia e da Roma antigas, que se firmou contrapondo-se a outras formas de pensar e de agir. Embora o pensamento pré-socrático considerasse a physis a essência única, a totalidade de tudo (algo mais amplo do que se entende atualmente como sendo natureza), foi com Platão e Aristóteles que se começou a valorizar mais o homem e a ideia, em detrimentos das coisas que o rodeavam. Iniciava-se, em um primeiro momento, aquilo que pouco a pouco se afirmaria como o que contemporaneamente apreende-se pela concepção de natureza desumanizada (GONÇALVES, 1996).
  • Com o avanço do Cristianismo no Ocidente, Deus passou a ser percebido e sentido como o ser supremo e o homem, sua imagem e semelhança. O Cristianismo assimilou a visão aristotélico-platônica, na qual somente a ideia continha a perfeição, opondo-se à realidade imperfeita do mundo. Durante a Idade Média, apregoou-se a separação entre espírito e matéria, ao difundir a perfeição de Deus em oposição à imperfeição do mundo material. 
É, portanto, decorrente dessa filosofia a separação entre corpo e alma, objeto e sujeito. Ou seja, o sujeito e sua alma são quem dão vida ao corpo, porém quando o corpo morre, sujeito e alma se desvanecem, e o corpo, logo passa a ser objeto inerte. Especula-se que esta relação sujeito-objeto é que favoreceu o desenvolvimento do método experimental. Um exemplo é a prática de dissecação de corpos, que já era uma atividade realizada em monastérios e universidades católicas desde a Idade Média, e que só foi possível dada a concepção de corpo e alma à parte (GONÇALVES, 1996).
  • Posteriormente, com René Descartes, filósofo, físico e matemático francês do século XVII, essa oposição homem-natureza, tal qual espírito-matéria e sujeito-objeto, completa-se passando a fazer parte do pensamento moderno e contemporâneo. A filosofia cartesiana atribuiu ao conhecimento um caráter pragmático e que vê a natureza como recurso. Em um trecho de Discurso sobre o Método, publicado em 1637, na França, Descartes afirma:
Pois elas [noções sobre a física] me mostraram que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas é possível encontrar-se outra prática mediante a qual, conhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam tão distintamente quanto conhecemos os diferentes ofícios de nossos artífices, fosse-nos possível aplicá-los do mesmo modo a todos os usos a que se prestam, fazendo-os como que senhores e possuidores da natureza. (DESCARTES, 2000, p.113-114, grifo nosso).

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  • Segundo Gonçalves (1996), dois aspectos marcam o pensamento cartesiano. Primeiro, o caráter pragmático que o conhecimento adquire e, em segundo, o antropocentrismo, o homem passa a ser “o senhor e o possuidor da natureza”. O antropocentrismo e o pragmatismo do pensamento cartesiano vincularam-se ao mercantilismo do período feudal, tal qual a herança medieval da separação entre espírito e matéria (GONÇALVES, 1996).
Na visão iluminista do século XVIII, a natureza era concebida como algo palpável. O mundo passou a ser compreendido a partir do real, do concreto e não mais de dogmas religiosos medievais. Com o desenvolvimento do capitalismo, e mais precisamente com o advento das Revoluções Industriais, essas ideias acabaram se fortalecendo. 
  • As cidades industriais dos séculos XVIII, especialmente as da Inglaterra, eram cobertas por miséria, com uma qualidade de vida deplorável para a população e corroborando para os aparentes antagonismos que distanciavam homem e natureza. Este período também é marcado pelas “descobertas científicas”, pelo aumento do interesse científico pela natureza - em especial da história natural - e pelo estabelecimento dos fundamentos da botânica e da zoologia (MCCORMICK, 1992).
Ainda no século XIX, o desenvolvimento da ciência e da técnica possibilitou que o pragmatismo triunfasse. A ciência e a técnica assumiram como nunca um significado central na vida dos homens. A natureza passou a ser concebida cada vez mais como um objeto a ser possuído e dominado. Aos olhos da ciência, a natureza foi subdividida em física, química, biologia, e o homem em economia, antropologia, história. Nesse contexto, as tentativas de pensar o homem e a natureza integradamente falharam. E assim, a história do homem inscreve-se como a progressiva ruptura com o seu entorno (GONÇALVES, 1996; SANTOS, 1992).
  • A exceção ficou por conta da teoria da evolução das espécies de Darwin e Wallace que demoliu todas as supostas provas da singularidade humana. O homem deixou de ser filho de Adão e Eva para ser primo do macaco. Isso provocou uma revisão profunda do entendimento da relação entre homem e natureza e do antropocentrismo (MCCORMICK, 1992).
Porém, as divisões sociais e técnicas do trabalho se intensificavam e contribuíam para que houvesse o processo de fragmentação e dicotomização entre fazer e pensar na sociedade capitalista industrial.
  • No início do século XX, os avanços da ciência já indicavam que o mundo operava sistemicamente. O átomo, tomado inicialmente com uma unidade indivisível, passou a ser interpretado como um sistema constituído de partículas que se interagem mutuamente. Na medida em que foi se desenvolvendo o estudo dos hábitos dos animais, ficou mais difícil compreender a evolução da vida das espécies animais tendo como referência apenas o comportamento de um indivíduo estudado em laboratório, isoladamente. Daí o reconhecimento de que a abordagem sistêmica já se fazia presente no estudo da natureza.
Durante séculos, a humanidade conviveu com a ideia de que os recursos naturais eram infinitos e as ameaças de escassez não eram um problema real. Se houvesse a supressão de alguma benesse, bastava migrar para um novo local reiniciando o ciclo de exploração. Todavia, a percepção de um mundo de recursos naturais ilimitados se transformava paulatinamente, sobretudo pelos avanços da ciência, que comprovavam a interligação entre os elementos da natureza, o que necessariamente afetaria as condições humanas.
  • Como se pode observar, as novas técnicas da Revolução Neolítica, a filosofia do mundo das ideias perfeitas de Platão e Aristóteles, a ciência de opostos de Descartes (homem-natureza, espírito-matéria e sujeito-objeto), a expansão da religião cristã no ocidente com suas distinções entre o divino e o mundano, o corpo e a alma, e as divisões sociais e técnicas do trabalho em fazer e pensar na sociedade capitalista industrial, entre outras, ofereceram elementos que compactuaram na construção de uma visão antropocêntrica e fragmentada de mundo.
Entretanto, principalmente a partir do século XX, as novas formas de relacionar o homem com a natureza começaram a emergir e se inicia um lento processo de “verdejar” da sociedade.

Transgênicos são organismos vivos modificados em laboratório. O código genético de uma espécie é alterado, os organismos transgênicos contém fragmentos do genoma de bactérias ou vírus em seu DNA.