segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Biotecnologia e Saúde Pública

Biotecnologia

  • O Brasil e outros países apostam que a biotecnologia é o futuro para o seu desenvolvimento. Em parte essa idéia vem da noção ingênua de que a exploração da biodiversidade, preexistente na natureza, oferece ilimitadas oportunidades.
Deixando de lado a produção de alimentos e biocombustíveis, a idéia mais frequente é a existência, na flora, de medicamentos para todos os males que afligem o homem. Essa noção não ocorre apenas na comunidade acadêmica, mas na cultura mágica popular, que acredita numa natureza a serviço do homem.
  • Na década de 1970, então no Massachusetts Institute of Technology (MIT), fui convocado para participar de um pequeno grupo que faria um diagnóstico para o novo diretor da Organização Mundial da Saúde. O diretor fez uma apresentação que julgou tão importante a ponto de gravá-la em cassete, distribuído aos membros da comissão. 
Sua posição era que o Primeiro Mundo seria tratado com medicamentos sofisticados, enquanto a população do Terceiro Mundo iria para o quintal de suas casas arrancar algumas plantas que, na forma de chás, funcionariam quase tão bem como os medicamentos.
  • Não houve condições para rejeitar essa visão primeiro-mundista, nem de dizer que os índios da Amazônia tinham uma vida média de 28 anos, a mesma sobrevida do homem de Neanderthal, que nos precedeu. Sem saber diagnosticar, salvo a malária pelos ciclos febris, só descobriram o quinino. Hoje eles demandam postos de saúde e medicamentos industrializados.
É grande o número de medicamentos originalmente derivados de plantas, o que inclui pseudomedicamentos que não têm eficácia, contribuindo para o não-tratamento de doenças, para a propaganda enganosa, pais-de-santo e outras vigarices. A maior fonte de novas moléculas não são plantas, mas fungos e bactérias. Um gigantesco passo foi a descoberta de antibióticos, que permitem a esses microorganismos delimitarem a área que irão ocupar, eliminando concorrentes para espaço e nutrientes. Com a descoberta de dezenas de antibióticos, o homem hoje sobrevive à invasão do seu organismo, bloqueando bactérias e fungos, elevando a vida média em dezenas de anos.
  • Desconhecemos o potencial da flora nacional de microorganismos e não podemos protegê-la. A proteção física é muito difícil, pois poucos miligramas de culturas, transportados pessoalmente ou em cartas, não podem ser controlados pela alfândega.
Conta-se que o Penicillium, que foi selecionado por mutações permitindo um aumento brutal da produção de penicilina, foi roubado por um visitante, que isolou os esporos de seus sapatos. Há alguns anos me foi dito, numa reunião da Sociedade Brasileira de Bioquímica, que seu presidente iria se ausentar por alguns dias para assinar um acordo com uma grande multinacional. 
  • Por esse acordo, com uma doação em equipamentos, seria montado um laboratório no Amazonas para separar microorganismos, cultivá-los, isolar do meio de cultura os produtos excretados, estabelecer por espectro de massa a sua estrutura e entregar à multinacional amostras dos produtos, o espectro de massa e o micro-organismo que os produzia. Por produto seriam pagos cerca de 100 reais! Com o micro-organismo perderíamos a informação genética e fonte biológica da nova molécula! Felizmente, três e-mails bloquearam essa biopirataria. 
O acordo não saiu, mas nada ganhamos, uma vez que, como comunidade científico-tecnológica, continuamos quase tão ignorantes do nosso potencial biológico como durante a visita de Darwin. Acordos de “cooperação científica” permitem a transferência sem controle de microorganismos, plantas e genomas.
  • Há cerca de 80 anos Paul Erhlich fez importantes contribuições para a microbiologia e a medicina. Inventou métodos, usando corantes industriais, que permitiram a Koch identificar com segurança o bacilo da tuberculose. Erhlich também produziu o soro antidiftérico, que salva crianças dessa terrível infecção (e deu a Behringer o Prêmio Nobel).
Inventou uma teoria sobre como o que hoje chamamos de anticorpos e antígenos se ligam com especificidade e sobre a possível existência na superfície das células de receptores específicos. Erhlich imaginava que corantes poderiam ser capazes de ligar-se especificamente a receptores dos microorganismos, destruindo-os sem afetar o homem como hospedeiro. 
  • Descobriu o trypan-red – primeira “bala-mágica” que atuava apenas no patógeno, destruindo os tripanossomas da doença do sono – e inventou a quimioterapia. Substituindo o nitrogênio desse corante por arsênico iniciou a síntese de análogos, descobrindo o 914, que curava a sífilis, doença comum entre os membros da corte real e importantes compositores da música clássica. É difícil imaginar Ehrlich sintetizando 914 compostos.
Foi a conjunção da indústria de produtos orgânicos derivados do carvão com a visão inovadora de Ehrlich que criou a indústria farmacêutica, uma parceria público-privada em 1904, sem as fantasias da medicina natural dos índios, aceitas por parte dos habitantes que vivem em Genebra, ao lado da Organização Mundial da Saúde! Organismos vivos podem ser usados para produzir moléculas complexas que não são facilmente sintetizadas. Poucas são as contribuições brasileiras. 
  • Um exemplo foi a bradicinina, que controla a hipertensão, resultado de uma observação inicial de que o veneno da jararaca, atuando sobre o plasma sanguíneo, produz uma substância hipotensora. É um peptídeo de nove aminoácidos, descoberto por Rocha e Silva, Beraldo e Rosenfeld, que associaram os institutos Butantan e Biológico. Um novo peptídeo foi descoberto que potencia a ação da bradicinina, inibindo uma enzima que inativa essa substância. 
Não atua quando administrado por via oral, pois é hidrolisado no aparelho digestivo. Pesquisadores norte-americanos foram capazes de sintetizar um produto análogo correspondente a três aminoácidos, sem ligação peptídica, que inibe, quando administrado oralmente, a enzima que inativa a bradicinina. Esse novo medicamento, o captopril, é usado por milhões de hipertensos e custa, ao Ministério da Saúde para distribuição gratuita ou subsidiada pela Farmácia Popular, apenas R$ 0,06 por dia!
  • Uma alternativa para a descoberta de produtos naturais foi a introdução, há duas décadas, da química combinatória, criando pequenas moléculas que são aleatoriamente interligadas, e produzindo, no laboratório, milhares de compostos que podem ter suas propriedades biológicas e farmacológicas testadas. Nem sempre a síntese química é a solução.
Há mais de uma década, um grupo de químicos chineses foi capaz de sintetizar insulina, com duas cadeias interligadas num total de 57 aminoácidos. Grande feito no laboratório, na prática uma inutilidade, a partir do momento que Boyer logrou, por biologia molecular, introduzir, na Eischerichia colli, o gene da proinsulina, contendo o código para síntese pela bactéria das duas cadeias de insulina interligadas por uma cadeia de 33 aminoácidos. Estava criado o uso da biologia molecular para produzir milhões de possíveis macromoléculas que, tendo a mesma composição química, diferiam pela seqüência e estrutura tridimensional.
  • Substituindo, numa proteína com 140 aminoácidos, cada um por outro dos 20 aminoácidos naturais, seria possível sintetizar 10184 sequências diferentes, o que seria inviável, pois apenas uma molécula de cada uma dessas sequências pesaria 2x10165 gramas, muito mais do que a massa do Universo, estimada em 2x1055 gramas!
Com um meio de cultura simples e barato, ficou possível produzir insulina, que atende a cerca de 5% da população mundial, numa escala impossível quando comparada à produção por extração do pâncreas de animais.
  • É isso que logrou a Biobras, conquista da biotecnologia brasileira que foi vendida ao monopólio internacional, sobre o qual não temos controle. A química sintética de moléculas pequenas é a maior dificuldade para a indústria farmacêutica brasileira, que tem quase total dependência da competência de síntese dos indianos, chineses e israelenses, que hoje dominam o mercado internacional de fármacos.
A essa deficiência se soma a limitação da oferta, pela nossa indústria de síntese química, de intermediários para a síntese de moléculas mais complexas. Abandonamos a produção de penicilina, fechando quatro fábricas que existiam em São Paulo. A penicilina G, produzida pelo fungo, tornou-se pouco eficaz quando as bactérias foram selecionadas por sua resistência.
  • As novas penicilinas são obtidas pela modificação química da penicilina G, e seu valor é muito mais alto. Incapazes de competir, desistimos. Se houver uma pandemia de gripe que, como a de 1918, infecta os pulmões, não disporemos de antibióticos, que estarão em alta demanda e com preços brutalmente maiores. Desses exemplos, podemos concluir:
a) a chance de utilizar o folclore de populações primitivas ou idéias esotéricas não levará o país a descobrir medicamentos eficazes, mas poderá ajudar a produzir, para o mercado nacional e internacional, poções “milagrosas” que não tratam doenças, mas dão lucro, enganando com sua propaganda os incautos, por algum tempo;
b) se plantas forem fonte de produtos químicos utilizados em grandes quantidades com preço baixo, como aconteceu com a borracha, tal fato irá contribuir para a destruição da floresta nativa. Como fonte de medicamentos, que têm demanda de quantidades reduzidas e um preço por unidade muitíssimo maior, esses produtos podem ser extraídos de plantas mas os produtos finais serão modificados quimicamente ou substituídos pela síntese;
c) pequena diferença na estrutura ou na configuração determina se um esterol atua como hormônio ou inibidor da supra-renal, das gônadas masculina ou feminina, como anti-inflamatório ou anticoncepcional; cerca de metade dos medicamentos em uso atua nas sinapses entre neurônios e entre neurônios e outras células, e apenas um dos estereoisômeros é ativo. 
A síntese de um produto no qual a configuração tridimensional é crítica usa precursores naturais, modificados com micro-organismos ou enzimas isolados. Quando possível, é mais eficaz e econômico do que dezenas de reações químicas complexas e caras.
  • Olhando para esse panorama, o que o Brasil precisa para explorar sua biodiversidade e criar produtos é a formação de uma elite inovadora, que domine biologia molecular, química orgânica sintética, bioquímica, farmacologia, cristalografia e modelagem química, processos industriais de fermentação e síntese, montando equipes para descobrir novos produtos e criar tecnologia, com viabilidade econômica, para produção industrial. 
Combinar pesquisa básica com pesquisa aplicada exige uma coordenação, só possível com a interação de lideranças e com uma formação ampla que acompanhe a hoje vasta literatura científica para encontrar brechas ainda não investigadas com potencial de gerar produto.
  • Na década de 70, quando eu trabalhava no MIT e em Harvard, vi centenas de chineses (de um país então não reconhecido pelos Estados Unidos), coreanos e indianos, mas raramente um brasileiro. Perdemos a chance.
Pretendemos agora produzir centenas de doutores que não encontrarão ocupação nas empresas privadas e nem nas públicas, as quais preferem comprar os produtos prontos para ser manipulados para empacotamento e, por receios reais e imaginários, não têm confiança em investir em inovação própria, apesar de termos um dos dez maiores mercados internos cativos de produtos farmacêuticos. Com essa visão é fácil ser pessimista quanto ao futuro do Brasil, ultrapassado de longe pelo boom asiático. Corremos para criar patentes que, na maioria, não têm demanda, ou cujo valor, se real, depende de termos advogados que cobram milhões.
  • É possível ter uma visão mais construtiva se focalizarmos a melhoria da educação e da saúde pública. Não sairemos de nosso nível de desenvolvimento, nem sequer lograremos mantê-lo, sem priorizar esses dois setores. Organizações internacionais, especialistas em planejamento e educadores nos apontam que há uma correlação entre educação e desenvolvimento. Correlação não significa causa e efeito. A mesma correlação existe com o consumo de refrigerantes.
Nunca me esqueço de uma visita ao Peru nos anos 50, quando constatei o esforço inútil de tentar ampliar a exploração mineral: dezenas de doutores em geologia  tornaram-se taxistas. O mesmo ocorrerá no Brasil caso continuem sendo dadas bolsas a jovens que não aprenderam a estudar para frequentar, às custas da sociedade,“universidades de bairro”. O que não se discute é o tipo de educação para a mundo de hoje e como inová-la. 
  • Quando os Estados Unidos perderam a corrida do espaço para a URSS, a resposta da comunidade científica foi modificar conteúdo e objetivos da educação em ciências para formar cientistas. Foi associada a esse movimento a inovação educacional no Brasil (Funbec), com a introdução, na escola secundária, de palavras-conceitos como DNA, dualidade da natureza da luz, ligações covalentes ou entropia (sem o que é difícil entender o aquecimento global). Era um esforço de criar a elite científica, mas que não atendeu ao desenvolvimento tecnológico ou à adequação ao mercado de trabalho. Um novo ciclo de inovação precisa surgir para que a população toda tenha uma visão baseada na objetividade da ciência, mas desta vez associando as bases da tecnologia e a consciência dos limites do nosso planeta substituindo a experiência real pela virtual das telas do computador.
É mais objetivo falar do nicho que encontrei ao voltar de uma década de exílio para um país onde tudo está por fazer. O Brasil criou dezenas de institutos científicos e tecnológicos. Só no estado de São Paulo, quase duas dezenas. Desses institutos, o de maior sucesso, sem dúvida, é a Embrapa, que luta pela sua subsistência. 

Saúde Pública

Todos eles tinham metas definidas, imaginando que era possível exercê-las isoladas da comunidade acadêmica, sem estudantes, sem submeter seus projetos ao crivo dos pares. Os institutos deterioraram, e a função para a qual eram mantidos foi esquecida. Contudo, a não-avaliação objetiva por especialistas externos e o sistema de estabilidade funcional não permitem que sejam extintos.
  • Lembram o serviço federal, que racionaria o álcool e o açúcar durante a Segunda Guerra Mundial: não houve racionamento, mas esse instituto “trabalhou” incessantemente por quase duas décadas.
O Butantan vivia as glórias de Vital  Brazil e dos soros contra venenos que imaginava administrar no seu hospital. Em 1984 o Ministério da Saúde, através do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), verificou que os soros produzidos pelo Butantan, por outros institutos menores e até por uma empresa nacional adquirida por uma multinacional, eram inativos e/ou contaminados, impróprios para uso humano. A multinacional fechou seu laboratório e a inspeção dos soros pelo INCQS, antes que seu uso fosse autorizado, criou um pânico: não tínhamos os soros e não havia como importá-los. 
  • Com 2.000 cavalos, o Butantan logrou, em 1985, produzir apenas 39.000 ampolas aprovadas para uma demanda nacional da ordem de um milhão de ampolas. O ministério, sem entender como se produz soros, imaginou que era simples aumentar a produção substituindo os tanques por maiores e adquirindo mais cavalos. Era preciso investir em novas tecnologias e cumprir as boas práticas de manufatura.
A velha liderança chegou à conclusão de que deveria derrubar a porteira que a separava da USP e trouxe, temporariamente, uma dezena de pesquisadores, que podiam se aposentar, para recriar o quadro científico do Butantan. Em contraste com a liberdade fundamental para a pesquisa científica básica, era essencial ter um grupo voltado para as prioridades de saúde pública, finalidade para a qual o instituto foi implantado em 1901. Foi criado o Centro de Biotecnologia, que conseguiu atrair 25 doutores que aceitaram a prioridade dos projetos de interesse da saúde pública, sem perder o direito fundamental de desenvolver outros projetos científicos de sua escolha, desde que financiados, portanto, passando pelo crivo da análise pelos pares. 
  • Muitos laboratórios de pesquisa básica têm agora lideranças reconhecidas, atraindo estudantes de pós-graduação na USP e obtendo recursos para financiar suas pesquisas. A produção científica cresceu e, ao mesmo tempo, cresceu o papel do Butantan na produção de imunobiológicos. Em contraste, aqui e no exterior, sem pesquisa básica, outros produtores de imunológicos se tornaram incapazes de inovar e produzir. A produção de vacinas, que se encontrava em estágio primitivo, era mais complexa.
Quando administramos vacinas, não estamos tratando pacientes para os quais, se o remédio não funciona, simplesmente é substituído. Todas as crianças nascidas a cada ano são vacinadas e, se ocorrer um erro, provocamos doenças ou mortes em massa! Para atender ao Programa Nacional de Imunização, que oferece gratuitamente vacinas para toda a população, era fundamental que o país tivesse acesso às vacinas, no volume necessário, com garantia de qualidade e eficácia, a um custo compatível com a disponibilidade do orçamento do ministério.
  • Foi assim que surgiu o Programa de Auto-suficiência, que estimularia o país a desenvolver competência tecnológica, produzindo as vacinas atualmente em uso, e para desenvolver e produzir novas gerações das mesmas ou novas vacinas, que prevenissem doenças que não existiam nos países mais avançados.
Eram indispensáveis a uniformidade e a consistência de cada vacina, meta incompatível com dezenas de pequenos produtores públicos vivendo no passado. Foi essa a mensagem do então ministro Adib Jatene, ao concentrar os esforços de capacitação em poucos institutos. Algumas vacinas escaparam dessas metas, e são compradas a granel para envase. 
  • Não foi esse o caminho adotado pelo Butantan, que, associando pesquisa, desenvolvimento e produção, logrou alcançar, em 2006, a produção integral das vacinas de coqueluche, difteria, tétano, hepatite B e raiva em cultura celular, atingindo o volume de 150 milhões de doses por ano, o que corresponde a 82% das vacinas produzidas no país. Apenas a vacina contra a febre amarela e BCG são produzidas em outros institutos.
Existe sempre quem questiona a necessidade de auto-suficiência. Isso ficou transparente quando surgiu a ameaça da pandemia de influenza aviária, que poderia repetir a catástrofe de 1918. 
  • A situação ficou óbvia em reunião na World Health Organization (WHO), na qual, discutindo as medidas emergenciais no caso de uma pandemia, os países onde estavam localizadas as plantas de produção da vacina da influenza, com certa razão, pretendiam reservar a sua produção para suas populações, apesar da óbvia destruição da estrutura e mercados internacionais, com gravíssimas conseqüências para os países ricos.
O Butantan está na fase final de montagem e validação da planta para produzir a vacina de influenza sazonal, que é administrada todos os anos para os 19 milhões de maiores de 60 anos, mais vulneráveis a pneumonia e morte, no inverno. A cada ano, a WHO analisa os sorotipos e genotipos dos vírus de influenza que circulam e encomenda os vírus vacinais e anticorpos para dosagem, que disponibiliza para os produtores, adequados para os hemisférios norte e sul.
  • O Butantan tinha negociado uma transferência de tecnologia da Sanofi-Aventis para a vacina sazonal, solucionando o problema de não ser possível registrar na Anvisa, a cada ano, a nova composição viral da vacina trivalente, mas apenas a tecnologia básica internacionalmente comprovada. 
Tínhamos adquirido, antes da ameaça da pandemia, os equipamentos que não eram disponíveis no mercado interno, como ultracentrífugas industriais de fluxo contínuo, que aceleravam a 200.000 g e cujo fornecimento demora dois anos. Dispomos, sem afetar a produção de carne aviária, de ovos fertilizados em volume necessário (20 milhões em quatro meses), que eram mais econômicos e viáveis do que cultura em células, importando componentes do meio de cultura cuja disponibilidade seria duvidosa.
  • Com essa infra-estrutura, o Butantan foi imediatamente reconhecido pela WHO como produtor, e participamos de todas as reuniões internacionais de combate à influenza sazonal e para o preparo para a pandemia. A maior parte das discussões era pouco produtiva, nem sequer alcançando a objetividade da Câmara Municipal de São Paulo, em 1918, que optou por construir o cemitério da Lapa! 
A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) convocou a Fiocruz, Birmex (México), Tucuman (Argentina) e o Butantan, e os colocou frente a frente com três dos maiores produtores da vacina de influenza. Propôs que estes transferissem a tecnologia aos candidatos a produtores na América Latina. A resposta foi unânime: 
a) se transferíssemos tecnologia e houvesse pandemia, não haveria vacinas a tempo, pois as plantas de produção tardam mais de seis anos para ser construídas, validadas e produzidas;
b) a posição das empresas era vender vacinas e não tecnologia! A reunião foi curta e objetiva. 
O acordo Butantan-Aventis foi um caso especial, graças ao velho pioneiro, Charles Merieux, que havia salvado o Brasil da epidemia de meningite AC, suprindo o país de vacinas. Com o pagamento da tecnologia e com a aquisição da vacina da influenza, inicialmente preparada e depois dos seus componentes virais, o ministério economizou, além da redução de custo da hospitalização, 300 milhões de dólares. O ministério e a secretaria do estado de São Paulo investiram na planta, meio a meio, cerca de 20 milhões de dólares. A planta deve ser operada pelo Butantan em 2008 e levou quatro anos para ser construída.
  • A produção da vacina da pandemia H5N1 dependia da construção de um vírus atenuado, usando engenharia genética reversa, em que o RNA é usado para produzir um DNA modificado para ser atenuado, que é o molde para fazer um RNA para infectar células produzindo vírus vacinais.
A WHO tinha encomendado esse vírus vacinal, derivado do vírus do Vietnã, que transferiu para os produtores. Nessa altura o Butantan já tinha status para receber o vírus vacinal e os anticorpos para dosagem.
  • O CDC construiu um vírus vacinal derivado do vírus da Indonésia, país que imaginou ter patente e royalties sobre esse vírus que a natureza lhe impingiu (desistiu recentemente), e o Butantan, mais uma vez, recebeu esse novo vírus vacinal. Não fosse o prestígio alcançado e a existência de uma planta quase pronta, estaríamos na mesma situação de todos os países do south of the Equator (com exceção de uma pequena planta na Austrália para sua população que tem o tamanho da de São Paulo).
David Fedson e eu trouxemos, há alguns anos, para o fórum da WHO, a proposta da introdução de hidróxido de alumínio na vacina de influenza como adjuvante, dessa forma reduzindo a dose de vacina, solucionando a falta do produto com os problemas nas fábricas na Inglaterra (que vendeu vacinas contaminadas ou inativas nos Estados Unidos) e reduzindo o custo para os países e para a população mais pobre.
  • As grandes empresas recusaram considerar a proposta. A ameaça da pandemia alterou o panorama. A vacina H5N1 que a WHO pretendia que fosse produzida replicava pouco, limitando a produção, e tinha pouca imunogenicidade, exigindo o equivalente a oito doses. O hidróxido de alumínio “foi redescoberto e patenteado” pela GSK, mas a ação adjuvante, como já sabíamos, de testes em camundongos e voluntários, realizados pelo Butantan e Unifesp, era inconsistente para vacina contra influenza. As grandes multinacionais iniciaram a corrida para adquirir os produtores de hidróxido de alumínio e de outros adjuvantes potenciais, enquanto vendiam a vacina H5N1 para o governo norte-americano por US$ 60 a US$ 100 a dose, um custo inacessível aos países em desenvolvimento. Mais uma vez os países mais pobres foram abandonados e “estimulados” a estocar vacinas e tamiflu (que rapidamente induziu resistência). 
Agora se propõe o uso do preventivo da vacina H5N1, independente da presença desse vírus na região, criando um mega-mercado, mesmo se essa disseminação não ocorrer, como foi com a ameaça da pandemia do vírus do porco em 1964.
  • A vacina obrigatória e base para produzir vacinas quadri e pentavalentes é o DTP (difteria-tétano-pertussis ou coqueluche) dos anos 30. Vacinas DTP de vários produtores internacionais eram tóxicas, induzindo choro prolongado e convulsões. Vacinas importadas pelo ministério, de laboratórios pré-qualificados pela WHO, foram recusadas pelo INCQS, mostrando definitivamente que países que não sabem testar vacinas não podem comprá-las.
O Butantan já havia logrado selecionar uma cepa e desenvolvido condições de crescimento e inativação que tornavam as vacinas muito menos tóxicas, passando nos testes internacionais. O Butantan produziu e administrou seu DTP, com sucesso, em 50 milhões de crianças, durante 15 anos. A WHO deve aprovar em 2007 a nossa vacina, que o Unicef aguarda ansiosamente. O Butantan construiu suas plantas para atender à demanda nacional, mas com a otimização, que só se aprende durante a produção, tem uma capacidade excedente de 150 milhões de doses por ano, para atender ao Unicef e Paho ou outros países.
  • O Japão desenvolveu uma vacina pertussis acelular (sem bactérias intactas) que acabou adotada por países ricos. Essa vacina é fornecida aos governos, através do Fundo Rotatório da Opas por US$ 8,15 a dose, contra US$ 0,15 da vacina celular.
Obviamente “mobilizados” pela indústria, pediatras e suas sociedades exigiam a adoção da nova vacina pelo Ministério da Saúde do Brasil. Com cinco doses por criança e 3,5 milhões de nascimentos por ano, a diferença era de “apenas” 140 milhões de dólares por ano!
  • O Butantan tomou outro rumo: eliminar da bactéria que constituía a vacina o LPS responsável pela toxidez. Essa nova vacina, que tem a segurança da vacina acelular, foi retestada pelo Netherland Vaccine Institute, depois do que a produção industrial se iniciou, chegando a ser solicitada autorização para usar a nossa tecnologia na Holanda. O ensaio clínico comparado foi realizado pela pediatria da Unicamp. Tínhamos resolvido o problema com uma solução compatível para países de menor poder aquisitivo. A vacinação pública e gratuita, de pobres e ricos, evita que as crianças levem essas doenças para casa. A vacinação permitiu eliminar a varíola da face da Terra! Como a vacinação não é gratuita e universal, nem na China, nem na Índia, não será possível eliminar a poliomielite nem o sarampo, que parecia iminente.
O LPS, com a ajuda de pesquisadores da USP e da Unifesp, foi transformado em MPLA (monofosforil lipídeo A), poderoso adjuvante que se liga a um tipo de receptores de leucócitos que atuam na resposta imune, e o Butantan testou seu poder adjuvante para a influenza. Com apenas um centésimo de micrograma de MPLA foi possível transformar uma dose da vacina contra influenza. A em quatro, aumentando a capacidade de produção e diminuindo o seu custo! A prova final aguarda o ensaio em voluntários, pois homens e camundongos não respondem da mesma forma.
  • Como subprodutos dessa capacidade, desenvolvemos uma tecnologia que pode recuperar cerca de 20 milhões de doses de uma pertussis acelular, de custo muito baixo, que será, depois do ensaio clínico, reservada para imunizar mulheres grávidas (para proteger o bebê nos primeiros meses de vida) e para crianças que tiveram reações inesperadas com a vacina DTP. A partir do LPS, o Butantan desenvolveu uma tecnologia para a produção e purificação do MPLA, e poderemos produzir adjuvante para cerca de l trilhão de doses de vacinas de influenza H5N1 e sazonal!
Enquanto a comunidade mundial discutia medidas para enfrentar a pandemia, o Butantan reformou um edifício e montou, em 100 dias, uma planta para iniciar a produção da vacina H5N1. Recentemente os jornais noticiavam que o governo dos Estados Unidos se dispunha a ajudar financeiramente a produção da vacina H5N1 pelo Butantan.
  • Esses recursos – norte-americanos e em seguida japoneses – foram canalizados através da WHO, e serão transferidos para uns poucos laboratórios com potencial para produzir a vacina para os países em desenvolvimento. O Butantan continuou a primeira escolha e receberemos uma ajuda de 2.160.000 dólares.
A Fundação B. M. Gates se associou ao Banco Mundial e à Fundação Rockefeller para oferecer vacinas básicas para os países pobres. A idéia foi financiar as grandes multinacionais, que venderiam vacinas a um preço reduzido. Imaginava-se que essas empresas até iriam desenvolver e produzir vacinas que eram importantes nos países em desenvolvimento, apesar de não ter mercado importante nos países desenvolvidos. Esse mercado subsidiado não condiz com a economia de mercado apregoada nos últimos anos, particularmente para os países menos desenvolvidos. Todos imaginam que, num determinado momento, os recursos de Bill Gates terão outro destino e que os países que recebem as vacinas de graça, apesar das promessas, não absorverão os custos, com retorno dessas infecções.
  • Os produtores públicos que têm como meta a saúde pública, com exceção do Brasil, morreram ou estão em coma, independente de novas inversões, pela falta de inciativa e competência. Na Índia e na China, os produtores são orientados pelo lucro, substancial e imediato.
Um outro importante exemplo de tecnologia brasileira foi o desenvolvimento da produção de surfactante pulmonar, apoiado pelo Ministério da Saúde e pela Fapesp.
  • Crianças que nascem com menos de 1.500 g, não produzem, antes de nascer, surfactante pulmonar em quantidade suficiente. Não choram, e, com os alvéolos pulmonares permanecendo colabados, morrem por asfixia. No mundo, a cada ano, são dois milhões de crianças. Suas mães, traumatizadas, tentarão nova gravidez, perdendo meses de trabalho, e a tragédia se repetirá. 
No Brasil são 50 mil por ano que não são tratados com o surfactante, que custa cerca de 700 reais por dose e que obviamente não está nas salas de parto de maternidades públicas ou ligadas ao SUS. Usando os pulmões porcinos que a Sadia generosamente nos fornece, desenvolvemos uma tecnologia em que mais de 95% dos insumos são reutilizados, num “circuito virtuoso”, reduzindo o custo do produto final. Essa tecnologia estará disponível nas maternidades até o fim de 2007 e o custo para o ministério permitirá uma economia de 70%.
  • Para acelerar o desenvolvimento, fui buscar no Instituto de Saúde Pública dos Estados Unidos duas vacinas que tinham sido desenvolvidas e testadas num pequeno número de voluntários. 
Transformá-las em vacinas de uso corrente exige desenvolver o escalonamento da produção e realizar testes clínicos. Nos dois casos – as vacinas contra rotavírus pentavalente e contra dengue tetravalente –, somos sócios numa importante empreitada de saúde pública. O caminho que abrimos com a vacina de rotavírus, que pode ser adaptada para a África, com seis sorotipos, ou para o Chile, com quatro, fez surgir um programa internacional que inclui a Índia e a China e protegerá cerca de 60% das crianças, por um custo compatível com esses países. 
  • O Ministério da Saúde e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo irão dividir o custo de construção e dos equipamentos da planta de rotavírus e, finalmente, depois de uma batalha de 15 anos, contra os vampiros e as empresas que são por eles representadas, da planta de hemoderivados, que terá a mais moderna tecnologia até hoje desenvolvida e instalada. O equipamento cromatográfico e parte da tecnologia serão adquiridos da Pharmacia e se pagarão em cerca de quatro anos. O restante da tecnologia será desenvolvida pelo Butantan.
Já ganhamos um prestígio: em vez de procurar, somos procurados. A Universidade George Washington desenvolveu uma vacina contra o amarelão (Necator), que incapacita adultos para o trabalho e crianças para aprender na escola. Fomos escolhidos como parceiros no escalonamento para produção da vacina que será testada. 
  • As vacinas contra pneumonia são constituídas de açúcares da cápsula bacteriana, ligados à toxina tetânica, e a proteção inclui de 11 a 23 sorotipos, com um custo de 50 dólares ou mais. Uma parceria com a Universidade de Harvard produzirá, para teste clínico, uma vacina única, sem carboidratos, que poderá ser produzida a um real! 
A vacina contra os vírus do papiloma do colo do útero, cujo desenvolvimento se iniciou no NHI, chega ao mercado por cerca de 1.500 dólares, portanto uma vacina que de fato não existe para 80% da mulheres do mundo. Estamos, em parte com apoio da Universidade de Colorado, desenvolvendo essa vacina com um custo aceitável para vacinação pública e gratuita.
  • Usei alguns exemplos em que o Butantan encontrou soluções desenvolvendo produtos biotecnológicos de impacto na saúde pública. Temos outros, cujos custos não são cobertos com recursos públicos. Para produzir o soro anti-botulínico, que permite salvar os poucos casos de intoxicação, temos que produzir as toxinas botulínicas.
A toxina botulínica A tem uso terapêutico em doenças neuromusculares, e o Butantan irá fornecê-la para os hospitais públicos. A maior demanda, que representa um gasto anual de 7 milhões de dólares, resulta do uso estético, e o excedente de produção do Butantan irá competir nesse mercado.
  • Quando cheguei ao Butantan, até encontrar as prioridades, imaginei separar todos os constituintes de 50 g de veneno crotálico. Salvo a descoberta de mais uma toxina, não logramos muitos avanços.
Separei a fração de peptídeo e pedi à dra. Zuleika do Vale para testar endorfinas. Tinha uma pequena atividade e essa informação ficou na revista do instituto. Em outro laboratório, Saul Schemberg notou que um veneno de aranhas induzia a priapismo.
  • Essas duas observações acabaram sendo independentemente redescobertas por outros pesquisadores. Um programa mais substancial foi criado no Butantan com recursos relativamente grandes da Fapesp para pesquisar potenciais fármacos presentes nos venenos. As cobras e alguns moluscos da costa têm uma enorme variedade de proteínas e peptídeos tóxicos e podem ser a base para novos fármacos, como ocorreu com o captopril.
A indústria farmacêutica mundial freqüentemente aguarda o desenvolvimento que ocorre em institutos de pesquisa ou universidades com recursos oficiais. A indústria farmacêutica nacional espera a mesma ajuda, com cofinanciamento público-privado. Recursos para a parceria público-privada têm sido disponibilizados pela Finep e pelo BNDES. 
  • Pesquisas realizadas no Primeiro Mundo mostram que a introdução de um novo medicamento ou vacina é um processo que leva uma década, tempo muito longo para as empresas brasileiras, em que os juros não compensam o investimento e falta tradição ou coragem de investir em longo prazo. Apesar de ter sido sinalizado um aumento substancial de recursos para essas parcerias público-privadas, não existe suficiente capacidade de descobertas com inovação nas universidades, nem apetite das empresas de candidatar-se a investir 50% do custeio de inovação. 
O programa CAC-Cepid do Butantan, com um grupo de empresas farmacêuticas de capital nacional, é um importante esforço, que só poderá ser avaliado decorridos dez anos. Mesmo no Primeiro Mundo, as empresas têm evitado o risco, reinventando drogas com substituição de alguns átomos, que apregoam ser melhores apesar de jamais terem sido comparadas com as drogas anteriores que têm a patente expirando. Uma parceria público-privada importante é com a indústria veterinária, totalmente privada e parcialmente de capital nacional.
  • A demanda de vacinas e medicamentos veterinários atinge um mercado quase uma dezena de vezes maior do que a humana. Para manter-se no mercado, exige apoio técnico científico, que começa a despontar.
O Butantan, com apoio da Finep, criou, com a empresa Ouro Fino, um laboratório-piloto para desenvolver e repassar tecnologia.
  • Estão fora desse repasse vacinas veterinárias usadas pelo Ministério da Saúde para bloquear a infecção humana. É o caso da vacina contra a raiva produzida em células animais, que deve substituir, já em 2008, as vacinas contra raiva que são oferecidas gratuitamente para cães domésticos. 
A nova vacina é mais eficaz, mais segura para o cão e mais barata para o ministério. Recentemente nos associamos ao Idri (Universidade de Washington em Seatle) para produzir a vacina combinada raiva-leishmania, que evitaria a transmissão desse protozoário para o homem.
  • Essas são iniciativas que, pela existência de apenas um grande consumidor, a sociedade brasileira, atendida pelo Ministério da Saúde, tornam-se viáveis com investimentos pequenos comparados com a aquisição dos produtos. Grandes desenvolvimentos, construção de plantas de produção, novos empregos que treinam em serviço técnicos de que não dispomos prenunciam um futuro promissor.

Biotecnologia e Saúde Pública