terça-feira, 11 de agosto de 2015

Um Recurso a ser Conhecido e Protegido



  • As águas subterrâneas são fundamentais para o desenvolvimento humano. No Brasil, elas desempenham importante papel no abastecimento público e privado, suprindo as mais variadas necessidades de água em diversas cidades e comunidades, bem como em sistemas autônomos residenciais, indústrias, serviços, irrigação agrícola e lazer. 
Menos reconhecido, mas igualmente importante, é seu papel ecológico, fundamental para manutenção da flora, fauna e fi ns estéticos ou paisagísticos em corpos d’água superficiais, pois a perenização da maior parte dos rios, lagos e pântanos é feita pela descarga de aquíferos, através dos fluxos de base. Esse mesmo fluxo de base também é importante para auxiliar na diluição de esgotos e evitar o assoreamento dos rios pelo acúmulo de sedimentos e lixos nas cidades devido à sua perda de capacidade de arrasto.
  • Avaliações preliminares dão conta que os aquíferos servem ao abastecimento para 30-40 % da população do país, sobretudo em cidades de médio e pequeno porte, embora também sejam relacionadas várias capitais como, por exemplo, Natal, Fortaleza, Belém, Maceió, Recife, Porto Velho e São Paulo, onde o abastecimento é feito, em alguma proporção, pelo recurso subterrâneo.
No Estado de São Paulo, 70 % dos núcleos urbanos são abastecidos total ou parcialmente pelas águas subterrâneas, incluindo cidades de porte como Ribeirão Preto, Marília, Bauru e São José do Rio Preto. No semi-árido nordestino, as comunidades rurais têm um importante manancial nas águas subterrâneas, assim como a irrigação no oeste da Chapada do Apodi, entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte. Pouco comentado também é o fato de que toda a água mineral é subterrânea, embora a recíproca não seja verdadeira. Além disso, as águas subterrâneas são responsáveis pelo turismo através das águas termais ou minerais em cidades como Caldas Novas em Goiás, Araxá e Poços de Caldas em Minas Gerais, Lindoia em São Paulo, assim como pelo suprimento do forte e crescente mercado de água mineral e potável de mesa engarrafada, que movimenta em torno de U$ 450 milhões por ano (Queiroz 2004).
  • Muito embora as águas subterrâneas mostrem sua importância na matriz hídrica do país, ela ainda é pouco explorada. O potencial das águas subterrâneas é enorme, sobretudo quando se analisa que, em escala global, 98 % das reservas de água doce e líquida se encontram em aquíferos. Essa grande capacidade de armazenamento e resistência contra longos períodos de estiagem, como os que se observam, com maior freqüência, devidos às mudanças climáticas, fazem dos recursos hídricos subterrâneos um grande aliado na redução dos estresses hídricos que populações têm enfrentado ou ainda enfrentarão.
Na direção da gestão sustentável dos recursos hídricos, a Lei nº 9.433/97, da Política Nacional de Recursos Hídricos, representou o marco jurídico de uma nova forma de pensar o aproveitamento dos recursos hídricos, a partir de uma visão sustentável, considerando a administração descentralizada e a participação da sociedade civil. A criação desta lei e os avanços obtidos em sua implementação ao longo dos últimos 12 anos foram significativos e reforçados pela crescente importância que a sociedade vem atribuindo aos recursos hídricos. 
  • Entretanto, embora na lei esteja explicita a visão da gestão integrada das águas superficiais e subterrâneas na bacia hidrográfica, a apreciação dos gestores e mesmo dos usuários é o da competição entre os recursos, mais do que sua integração. Assim, contemplar separadamente mananciais superficiais e subterrâneos representa, além de uma simplificação, uma limitação na efetiva solução dos problemas que a sociedade exige resposta (Zoby & Matos 2002). As águas subterrâneas não devem, nesse contexto, serem vistas apenas como uma coadjuvante no abastecimento de água de cidades, comunidades ou mesmo de um empreendimento, mas como uma alternativa de igual importância como manancial e sob o ponto de vista econômico.
O objetivo desse trabalho é discutir esses temas mostrando o uso e as potencialidades do recurso hídrico subterrâneo no país, indicando as alternativas para uma explotação integrada e otimizada, beneficiando o ambiente, a sociedade e a economia.

As Águas Subterrâneas no Brasil:
  • As reservas renováveis de água subterrânea no Brasil, ou seja, suas recargas efetivas, alcançam 42.289 m3 s-1 (1.334 km2 a-1) e correspondem a 24 % do escoamento dos rios em território nacional (vazão média anual de 179.433 m3 s-1) e 49 % da vazão de estiagem (considerada como a vazão de estiagem com 95 % de permanência). Somente os 27 principais aquíferos sedimentares, que ocupam 32 % da área do país, totalizam a 20.473 m3 s-1. Essa gigantesca vazão de água é distribuída, de forma simplificada, em dois grandes grupos, a saber: aquíferos de rochas e materiais sedimentares e aquíferos de rochas fraturadas (ANA 2005a, 2005b, Hirata et al 2006).
Aquíferos de rochas sedimentares: os terrenos sedimentares ocupam cerca de 4,13 milhões de km2, ou seja, 48,5 % do país, associando-se às grandes bacias sedimentares do Proterozóico/ Paleozóico, Proterozóico/Mesozóico e Paleozóico e às bacias menores do Mesozoico e Cenozoico. Nesses terrenos, encontram-se 27 sistemas aquíferos de porosidade granular e, subordinadamente, cársticos e fraturados, com área de afloramento ou de recarga de 2,76 milhões de km2 (32 % do país). 
  • A principal bacia sedimentar proterozoica brasileira é a do rio São Francisco, a qual compreende dois sistemas aquíferos importantes de dimensões regionais, o Sistema Aquífero Bambuí (Neoproterozóico) e o Sistema Aquífero Urucuia-Areado (Cretáceo), totalizando 175 mil km2. As maiores bacias brasileiras têm idade paleozoica e são: Bacia do Paraná (Ordoviciano a Cretáceo, com 1 milhão de km2 na porção brasileira), ressaltando os sistemas aquíferos Bauru-Caiuá, Guarani, Tubarão, Ponta Grossa e Furnas; Bacia do Parnaíba (Siluriano a Cretáceo, com 600 mil km2), destacando-se os sistemas aquíferos Itaperucu, Corda, Motuca,
Poti-Piauí, Cabeças e Serra Grande; e Bacia do Amazonas (Ordoviciano a Terciário, com 1,3 milhões de km2), com os sistemas aquíferos Boa Vista, Solimões e Alter do Chão. As bacias sedimentares do Mesozóico têm dimensões menores do que as do Paleozóico, concentram-se nas regiões costeiras ou próximas a elas e são, em geral, de grande espessura, podendo alcançar milhares de metros.
  • Aquíferos em sistemas fraturados: os terrenos cristalinos pré-cambrianos, que se comportam como aquíferos fraturados típicos, ocupam a área de cerca de 4,38 milhões de km2 (aproximadamente 51,5 % do território brasileiro) e coincidem, em grande parte, com o Cráton do Amazonas e os cinturões de dobramento do Neoproterozóico, englobando parte do embasamento do Cráton do São Francisco. 
O embasamento dos crátons e cinturões de dobramento está constituído, predominantemente, por rochas de alto grau metamórfico (gnáisses-migmatitos- granito e granulito), com rochas máficas e ultramáficas subordinadas, ademais de restos de associações metavulcanossedimentares de baixo a médio grau metamórfico. Os cinturões de dobramento são intrudidos por granitos e constituídos por rochas metassedimentares (terrígenas e carbonáticas) ou metavulcanossedimentares (vulcânicas, terrígenas e carbonáticas) em fácies metamórficas variadas de xisto verde a anfibolito. Basaltos e diabásios da Formação Serra Geral (Eocretáceo) da Bacia do Paraná constituem, em conjunto com as rochas pré-cambrianas, os principais aquíferos fraturados do país.
  • De forma geral, os aquíferos do país apresentem excelente a boa qualidade natural de suas águas em quase todo o seu território. A química natural é controlada, basicamente, pelas rochas e sedimentos que conformam o aquífero e pelo clima na área de recarga. As unidades hidrogeológicas da região norte, por exemplo, onde a chuva é abundante, apresentam águas ácidas, bicarbonatadas e de baixa mineralização. As rochas cristalinas caracterizam-se por apresentar águas bicarbonatadas cálcicas e cálcica-magnesianas. Os aquíferos próximos à região costeira são, em oposição às águas interiores, mais ricos em íons cloreto e sódio (Hirata et al. 2006).
Regionalmente é possível identificar problemas associados ao excesso de alguns íons, que localmente podem limitar a utilização das águas do aquífero. As principais anomalias químicas são (Zoby 2008):
  • Em áreas de ocorrência de rochas calcárias, são observados problemas localizados de elevada dureza e/ou sólidos totais dissolvidos, como é o caso dos sistemas aquíferos Bambuí e Jandaíra;
  • Em sistemas aquíferos localizados nas porções mais confinadas de algumas bacias sedimentares, sob condições de circulação lenta, o enriquecimento por sais minerais em profundidade pode criar restrições ao aproveitamento da água pela salinidade total, como observado nos sistemas aquíferos Guarani (Paraná e Rio Grande do Sul), Açu e Serra Grande; 
  • Adicionalmente, existem minerais cuja dissolução, localizada, gera águas com concentrações acima do padrão de potabilidade. É o caso do ferro nos sistemas aquíferos Alter do Chão, Missão
Velha e Barreiras e do flúor nos sistemas aquíferos Bambuí, Guarani e Serra Geral. É conhecida ainda a ocorrência de elevados teores de cromo em águas no noroeste do Estado de São Paulo, no Sistema Aquífero Bauru-Caiuá.
  • Nos terrenos cristalinos, os problemas de qualidade natural das águas subterrâneas estão concentrados no semi-árido nordestino (Zoby 2008) e referem-se à sua alta salinidade. O uso de dessalinizadores viabiliza o aproveitamento dos poços com água, sendo que a osmose reversa tem sido o processo mais utilizado nesse sentido.

Um Recurso a ser Conhecido e Protegido

Aproveitamento dos recursos Hídricos Subterrâneos:
  • Realizar a gestão efetiva do recurso hídrico em uma bacia hidrográfica exige, basicamente, o conhecimento da disponibilidade hídrica tanto em qualidade quanto em quantidade das demandas de águas. Além disso, de um cadastro de usuários, da vulnerabilidade à poluição dos aquíferos e de uma classificação de fontes potenciais de contaminação que ameaçam a qualidade tanto das águas superficiais quanto das subterrâneas. 
Com relação à água subterrânea, o conhecimento da disponibilidade hídrica subterrânea é bastante limitado em escala nacional e os poucos estudos regionais estão defasados (Zoby & Matos 2002).
  • O primeiro mapa hidrogeológico do país foi elaborado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (1983). Rebouças (1988) sintetizou as informações disponíveis sobre os aquíferos mais importantes. Posteriormente, a Agência Nacional de Águas (ANA 2005a, 2005b) realizou duas publicações que apresentam uma síntese de dados regionais sobre a qualidade das águas, reservas e produtividade dos principais sistemas aquíferos do país. Mais recentemente, em 2007, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) apresentou um mapa dos domínios e subdomínios hidrogeológicos em um sistema de informações geográficas, na escala 1:2.500.000. 
Em relação aos estudos regionais, a mais completa caracterização regional de aquíferos no Brasil foi realizada no Nordeste, no período de 1965 a 1975, pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e constituiu o “Inventário Hidrogeológico Básico do Nordeste”. 
  • Merecem destaque ainda, dentro do contexto nacional, os “Estudos das águas subterrânea das regiões administrativas do Estado de São Paulo” realizados pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica, no período de 1972 a 1983. O quadro acima demonstra a falta de políticas públicas para a gestão dos recursos hídricos subterrâneos. 
A carência de estudos hidrogeológicos no país também reflete as densidades demográficas e os graus de escassez das águas superficiais em relação às demandas impostas pela população e pelas atividades econômicas. Por isso, os maiores níveis de informação estão concentrados nos domínios metropolitanos (Rebouças 1999).
  • Esse aspecto fi ca bastante evidente quando se verifica a expressiva quantidade de estudos em escala local, sobretudo em alguns estados das regiões Sudeste e Sul. Embora ainda aquém das reais necessidades, os órgãos de meio ambiente estaduais têm exigido investigações para a caracterização da contaminação em solo e águas subterrâneas. Em São Paulo, por exemplo, há 2.514 áreas declaradamente contaminadas (CETESB 2009), muitas das quais têm também sua remediação em curso e, inclusive, algumas poucas já foram devidamente finalizadas. Desta for ma, se há falta de políticas públicas regionais que permitiriam estabelecer as áreas de maior prioridade para os estudos de detalhe, de outro lado verifica-se que os casos pontuais de contaminação estão sendo estudados, embora de forma não sistemática pelo país. 
Em relação às demandas da água subterrânea, há incerteza em relação ao número de poços existentes no Brasil. Cardoso et al. (2008) realizaram, utilizando diversos estudos e dados de órgãos gestores estaduais de recursos hídricos e da Agência Nacional de Águas, análises para cada unidade da federação, estimando a existência de cerca de 416 mil poços perfurados no Brasil desde 1958, dos quais 63 mil estariam fora de operação (aproximadamente 15 % do total).A média atual de poços perfurados é de 10.800 por ano.
  • No Estado de São Paulo, duas áreas tiveram sua explotação restringida por problemas de uso intenso sem planejamento ou super explotação, São as cidades de Ribeirão Preto e de São José do Rio Preto. Nessas duas localidades, foram estabelecidas normas restritivas para a perfuração de novos poços ou mesmo para a explotação das águas subterrâneas.
A falta de entendimento sobre o comportamento hidrodinâmico dos aquíferos tem dificultado, inclusive, o entendimento do que seja super explotação. Os estudos conduzidos em algumas localidades são restritos à descrição das quedas dos níveis de água em um aquífero, desconsiderando que isso é uma característica inerente à utilização do manancial subterrâneo. A real caracterização da super explotação deve considerar, necessariamente, a avaliação dos custos dos impactos ecológicos, sociais e econômicos que essa explotação provoca, ademais do próprio balanço de entradas e saídas de água do aquífero.
  • Na questão da demanda de água, cabe destacar também que a falta de conhecimento da participação das águas subterrâneas no abastecimento público e privado cria um problema importante.
Na maioria das cidades se desconhece o total de água proveniente de poços que é explotada pelo usuário privado. Geralmente, as estimativas são subestimadas e não refletem a real dimensão da dependência que a cidade tem nos recursos hídricos subterrâneos.
  • Um bom exemplo é o que ocorre na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (BAT), onde está inserida a Região Metropolitana de São Paulo. O abastecimento pela rede pública, com águas de origem superficial e que suprem a quase totalidade da população, soma 64 m3 s-1, enquanto os 10 mil poços em operação atendem outros 10 m3 s-1 que, conjuntamente, totalizam a demanda de 74 m3 s-1. O problema é que as instalações da concessionária de saneamento não têm capacidade de fornecer adicionalmente mais água.
 Caso os poços privados (que são 70 % ilegais) venham a paralisar sua explotação, quer pela super explotação quer pela contaminação, o sistema público colapsaria, pois embora representando apenas 15 % da demanda, não há mais água disponível, sem que isso exija um grande investimento de longo prazo (Hirata et al. 2002). Outro exemplo é do paradoxo que ocorre na região metropolitana de Belém, situada em uma região com elevada disponibilidade hídrica, que tem cerca de 30 % do abastecimento público suprido por águas subterrâneas, ademais de milhares de poços privados. Muitos desses poços privados são mal construídos, constituindo assim uma importante porta de entrada para a contaminação, em especial por esgotos domésticos. Por sinal, a carência de redes coletoras de esgoto nessa região acaba poluindo os diversos rios que cruzam a cidade, ampliando a pressão pela utilização das águas subterrâneas.
  • A realidade do país revela que o conhecimento da hidrodinâmica e da hidro-química dos sistemas aquíferos é também bastante limitado em função do monitoramento disponível, ao contrário do que é observado em relação às águas superficiais, as quais contam com uma extensa rede de monitoramento fluviométrico, com cerca de 5.800 estações em funcionamento. Somente alguns estados têm redes de monitoramento de qualidade ou quantidade através de seus órgãos gestores de recursos hídricos ou de meio ambiente. Alguns poucos exemplos dessas redes regionais estão em operação nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Norte e no Distrito Federal. Além desses órgãos, as companhias de saneamento, que têm a água subterrânea em sua matriz hídrica, também dispõem de redes de monitoramento de qualidade, embora tais órgãos estejam muito mais interessados em verificar a potabilidade das águas de seus poços do que em avaliar a condição do aquífero como um todo.
São Paulo foi o estado pioneiro no monitoramento regional, tendo iniciado suas atividades em 1990. Atualmente, a rede conta com 180 poços de abastecimento público distribuídos no estado, incluindo a BAT, que são monitorados bienalmente por meio de 40 características físicas, químicas e microbiológicas, que incluem até compostos orgânicos (Dias et al. 2008). No Estado de Minas Gerais, na bacia do rio Verde Grande, afluente do São Francisco, foi implantada, em 2004, uma rede piloto de monitoramento da qualidade da água. No Distrito Federal, o monitoramento qualitativo regional semestral foi iniciado no segundo semestre de 2006 em 150 poços em produção operados pela CAESB e inclui 27 características físicas, químicas e bacteriológicas.
  • O monitoramento quantitativo foi iniciado em 2007 e envolve a medição do nível estático de 27 poços, alguns exclusivos para observação e outros hoje em operação (Moraes et al. 2008). Mais recentemente, o Projeto Aquífero Guarani estabeleceu uma rede de monitoramento para sua área de ocorrência nos quatro países, nominando responsáveis em cada estado brasileiro.
Deste relato, é óbvio que essa rede de monitoramento não atende a um mínimo necessário para o reconhecimento dos aquíferos ou de seu comportamento através do tempo e sob uso e ameaças de contaminação. Ressalta-se ademais que os poços de monitoramento são “míopes”, ou seja, podem monitorar apenas uma área de poucos metros quadrados no seu entorno. Assim, ou se estabelece uma estratégia que focalize as redes de monitoramento, onde são mais necessárias (com grande clareza de objetivos), ou se aumenta a densidade de poços e a freqüência de amostragens.
  • Essa carência de informação básica relativa aos poços perfurados e de monitoramento traduz-se na escassez de dados confiáveis sobre a potencialidade hídrica dos sistemas aquíferos e sobre o seu estágio atual de explotação. Faltam, portanto, para o planejamento e gerenciamento efetivo dos recursos hídricos, levantamentos básicos de hidrogeologia que possam subsidiar a tomada de decisões de autoridades competentes em recursos hídricos e em saúde.
A lacuna do conhecimento sistemático da situação das águas subterrâneas no país não permite identificar e delimitar a extensão dos problemas que afetam os aquíferos e seus usuários. A contaminação antropogênica e a super explotação de aquíferos são descritos pontualmente pelo território, mas sem uma sistematização que permita extrapolar suas reais dimensões ou identificar outras áreas com igual potencialidade. É certo, entretanto, que os problemas ainda são poucos frente aos volumes e extensão dos aquíferos, mas sabe-se, também, pelas informações disponíveis, que essas questões estão avolumando em número e complexidade, impactando de forma crescente os mananciais subterrâneos. Não existe um trabalho sistematizado de avaliação da contaminação ou da degradação antropogênica de aquíferos no país. O Estado de São Paulo é um dos pioneiros nesses estudos (Hirata et al. 1997), mas falta uma atualização sistemática desses estudos.
  • O conhecimento disponível no país indica que os principais contaminantes são: nitrato, derivados de petróleo (em especial a gasolina e os solventes clorados), metais pesados, vírus e bactérias. O nitrato é a substância contaminante individual de maior presença nos aquíferos brasileiros.
Nas áreas urbanizadas, é reflexo da falta de sistemas de esgotamento sanitário que, no país, atinge pouco mais de 50 % da população e, em áreas com tais redes de esgoto, da falta de manutenção. Alguns estudos têm mostrado que as perdas de esgoto em redes paulistas têm superado 40 %, com um volume significativo recarregando os aquíferos. Até o momento, há poucos estudos sobre o tema, ressaltando-se aqueles descritos no Sistema Aquífero Barreiras, para as cidades de São Luís, Fortaleza, Belém e Natal (Zoby 2008), para os aquíferos cenozóicos da capital paulista (Viviani & Hirata 2008) e para várias cidades do interior paulista (Cagnon & Hirata 2002), mostrando que se trata de problema extensivo pelo país. Em áreas agrícolas, o nitrato tem origem no excesso da aplicação de fertilizantes nitrogenados. Até o momento, são desconhecidos os estudos sobre essa matéria no Brasil e as avaliações são inferências de casos relatados no exterior.
  • Outros compostos contaminantes das águas subterrâneas em áreas urbanas são os combustíveis líquidos derivados do petróleo. Baseado nas estatísticas do Estado de São Paulo (CETESB 2009), a contaminação pontual mais comum é advinda de estações de serviço, a partir de vazamentos de combustíveis dos tanques de armazenamento, de suas linhas ou da própria operação.
Metais pesados e solventes clorados são produtos bastante comuns na indústria e responsáveis pelas maiores e mais complexas plumas de contaminação em aqüíferos. Um recente estudo foi encomendado pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica à empresa Servmar Ambiental, na região sudoeste da cidade de São Paulo. Esse estudo indicou que, na área do Jurubatuba, uma antiga ocupação industrial, há várias plumas de contaminação por solventes halogenados e que muitas delas se sobrepõem, inclusive, atingindo o aqüífero fraturado subjacente aos depósitos sedimentares, com fases livres de solventes clorados mais densos do que a água. Essa área foi a primeira no país a sofrer restrição na explotação por um instrumento legal devido à contaminação. Nessa localidade, nenhum poço novo pode ser perfurado e, onde a contaminação é detectada, o poço é lacrado e a área circunvizinha é proibida de perfurar novos poços.
  • Metais pesados e solventes clorados diversos também estão presentes em muitos aqüíferos pela deposição inadequada de resíduos sólidos em lixões. Com base em estatísticas de outros países e de estudos localizados no Brasil, acredita-se que essa atividade deva ser a causa do segundo maior grupo de contaminadores de solos e aqüíferos no país, proporcionalmente ao número de atividades em operação ou abandonadas.
A atividade mineral causa grandes modificações no ciclo hidrológico local, reduzindo a vulnerabilidade dos aqüíferos pela retirada da zona não saturada e das camadas protetoras do solo. Uma das poucas áreas em que o conhecimento é razoável ocorre no Estado de Santa Catarina, onde a mineração de carvão afeta a qualidade das águas superficiais e subterrâneas. No Estado de Minas Gerais, os estudos envolvendo os impactos hidráulicos da atividade de mineração de ferro em rios e no próprio aqüífero são bem conduzidos em muitos empreendimentos, existindo uma boa rede de monitoração dos aqüíferos pelas empresas responsáveis pela extração do minério.
  • Complementarmente, a intrusão salina é um problema que afeta os aqüíferos em áreas litorâneas, resultado do desequilíbrio entre a extração de água subterrânea junto à costa e as descargas subterrâneas, necessárias para evitar o avanço da água salgada para o continente. Esse problema tem sido descrito em alguns aqüíferos urbanos junto a capitais litorâneas, sobretudo no Nordeste. Exemplos podem ser citados no Sistema Aqüífero Barreiras, nas cidades de São Luís, Maceió, Fortaleza e em áreas do Estado do Rio de Janeiro (Zoby 2008). A indução de águas de baixa qualidade pelo bombeamento excessivo também é outro caso que afeta os aqüíferos, como os observados no Aquífero Beberibe no Recife, em que a extração descontrolada está induzindo o movimento de águas salinizadas do Aquífero Boa Viagem em poços mal construídos (Costa et al. 1998). O mesmo problema também tem sido observado em alguns aquíferos situados em áreas urbanas no Estado de São Paulo, onde a porção superior está contaminada por nitrato e o bombeamento dos poços induz a pluma às suas porções mais inferiores, comprometendo, inclusive em alguns casos, as fontes de águas minerais.
Por fi m, a presença de bactérias e vírus também é bastante comum em poços mal construídos e/ou com manutenção deficiente. A construção de poços fora do padrão recomendado pela ABNT é uma regra pelo país, o que propicia que a maioria seja um vetor de contaminação do aqüífero pela conexão criada entre a superfície e a zona saturada ou, também, entre as porções mais rasas do aqüífero e as mais profundas. Essa questão é particularmente mais preocupante em áreas periféricas de cidades, onde a falta de rede pública de água coloca poços de abastecimento familiar junto a fossas negras, expondo a população a grande risco.

Os Desafios:
Para a gestão dos recursos Hídricos subterrâneos:
  • A grande importância da água subterrânea para o desenvolvimento social e econômico da população contrasta com a deficiência no conhecimento do potencial e do estágio de explotação dos aquíferos que coloca, assim, grandes desafios para a gestão adequada da água.
Um aspecto relevante a ser considerado é que a dinâmica das águas subterrâneas é distinta daquela das águas superficiais. O rio, do ponto de vista do gestor do recurso hídrico, é o “antônimo” do aquífero. O rio tem uma baixa capacidade de armazenar água, mas, por outro lado, pode entregar uma vazão instantânea muito maior do que os aquíferos. Adicionalmente, a explotação dos aquíferos é feita por poços e nascentes que, geralmente, têm vazões estáveis (pouco influenciado pela sazonalidade climática), mas, geralmente reduzidas quando comparadas às observadas em captações superficiais. 
  • O aproveitamento dessa dinâmica própria das duas manifestações da água é muito pouco utilizado no país. Mesmo em cidades que fazem uso desses dois mananciais, não há um planejamento integrado que se beneficie das vantagens de cada recurso. Em algumas cidades, como Madri (Espanha), por exemplo, o excesso de água superficial no período de chuvas ajuda a recarregar o aqüífero após o período em que ele foi mais demandado, na estiagem, quando os rios estavam sem água e a água subterrânea supria a cidade.
Da mesma forma, a explotação das águas subterrâneas é caracterizada por uma menor inversão financeira inicial e por permitir soluções escalonadas (um poço após o outro) na instalação de sistemas de abastecimento de grande porte, permitindo até sistemas independentes e atomizados.
  • As captações de água superficial necessitam, entretanto, de maiores inversões iniciais e não são tão flexíveis. Contudo, os custos do bombeamento e da energia elétrica fazem das águas subterrâneas pouco competitivas em aquíferos onde a transmissividade (produto da condutividade hidráulica e da espessura saturada do aquífero) é baixa ou onde os níveis dinâmicos sejam profundos ou mesmo onde a demanda seja elevada e os poços pouco produtivos.
Assim, é essencial repensar a matriz hídrica, tanto na escala municipal (envolvendo a concessionária e os poderes públicos locais e municipais), como na escala de bacia hidrográfica (envolvendo os comitês de bacia) e aperfeiçoá-la a partir dessa óptica, trazendo grandes benefícios econômicos, sociais e ecológicos. Nesta linha, a Agência Nacional de Águas está desenvolvendo o Atlas de Abastecimento Urbano de Água, que visa a otimizar a escolha do manancial e a propor alternativas técnicas para o suprimento de água dos municípios brasileiros até o horizonte do ano 2015.
  • O uso desses conceitos no abastecimento público ou privado não foi ainda aplicado em qualquer localidade no país. Mas, uma janela de oportunidade ocorre em muitos de seus municípios.
As concessionárias fornecem água à população através da rede pública (tanto com origem superficial quanto subterrânea). A população, com seus poços tubulares, é complementarmente suprida por água subterrânea. Embora de forma não intencional, a concessionária acaba por se beneficiar desse aporte adicional de água, pois, em muitos casos, ela não tem a capacidade de suprir toda a demanda da população. O grande problema é que esse processo não é planejado e o conhecimento da real dependência desse aporte adicional é, muitas vezes, subestimado.
  • Essa falta de planejamento acaba por trazer problemas adicionais, que poderiam ser evitados, incluindo a contaminação da água dos poços (quer por má construção da captação, quer pela contaminação na área de captura do poço) e a super explotação, inclusive atingindo os poços da própria concessionária.
O disciplinamento do uso da água subterrânea através de um programa efetivo de licença de perfuração e outorga, junto com a cobrança dos serviços de esgoto, a que as concessionárias têm direito e poderia amortizar parte dos investimentos em infra-estrutura, e com um eficiente programa de comunicação social envolvendo os usuários, poderia constituir a base para uma explotação adequada dos recursos subterrâneos. As concessionárias ou associações de usuários de água subterrânea poderiam auxiliar o dono da captação a tirar melhor proveito do seu poço, reduzindo gastos e impactos ambientais e dando mais fôlego às concessionárias que, assim, amortizariam os problemas de sazonalidade da demanda de água ou, então, diminuiriam os investimentos de curto e médio prazo na instalação de obras e sistemas de tratamento e reservação de água. Num segundo momento, o poder público municipal (associado ou não ao comitê de bacia) deveria buscar a otimização de todo esse sistema de forma integrada.
  • Uma diferença também importante entre os dois recursos está na dificuldade da descontaminação (remediação) de aquíferos, comparativamente aos corpos de água superficial. Embora a qualidade natural das águas subterrâneas seja excelente e atenda em muitos casos a potabilidade, a reduzida velocidade de circulação das águas através do meio poroso ou das fraturas e a complexa geometria dos poros e sua heterogeneidade fazem com que sua descontaminação para alguns tipos específicos de compostos, como fase livre de solventes clorados, seja quase impossível, exceto pela retirada física do meio aquífero. Essa característica faz com que programas de proteção da qualidade devam ser norteados à prevenção, muito mais eficiente do que a recuperação de aquíferos.
O controle do uso e ocupação do solo, por meio da restrição e da fiscalização das atividades antrópicas, é uma das estratégias de proteção das águas subterrâneas e pode ter dois enfoques (Foster et al. 2002). O primeiro é a proteção geral de um aquífero, identificando áreas mais vulneráveis à contaminação, de forma a promover um controle regional do uso do solo em toda a sua extensão, sobretudo na zona de afloramento. O segundo enfoque é a proteção pontual, voltada à captação de água subterrânea, geralmente um instrumento bastante comum às concessionárias de água.
  • No Brasil, ainda são escassos os estudos sobre a questão de proteção e vulnerabilidade de aquíferos (Zoby 2008). O Estado de São Paulo propôs, de forma pioneira, critérios técnicos para a adoção de perímetros de proteção de poços (Hirata 1994, Iritani 1998). Em algumas regiões do país com expressiva demanda por água, já foram realizados estudos para determinação da vulnerabilidade e/ou do perigo de contaminação como na porção noroeste da área metropolitana de Belém, no aquífero Serra Geral em Londrina e no Aquífero Beberibe, no setor norte da Região Metropolitana de Recife ou mesmo nas regiões metropolitanas de Campinas e de São Paulo e nas cidades de São José do Rio Preto, Itu e Sorocaba, no Estado de São Paulo.
Cabe destacar, complementarmente, que a proteção das águas subterrâneas depende diretamente das atividades antropogênicas e, portanto, só se torna eficiente se adotada conjuntamente dentro dos planos diretores de uso e ocupação dos solos dos municípios. Mais recentemente, o enquadramento das água subterrâneas, aprovado em abril de 2008 pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) por meio da Resolução nº 396/2008, constitui um novo instrumento legal, de abrangência nacional, para a proteção das águas subterrâneas.
  • Posteriormente, em dezembro desse mesmo ano, passou pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) a Resolução nº 91/2008, que trata dos procedimentos gerais para o enquadramento das águas superficiais e subterrâneas, norma esta inovadora na gestão integrada de recursos hídricos. Cabe salientar que, até então, as águas subterrâneas não eram alvo de classificação e enquadramento.
Assim, se estabelece um paradoxo em que a falta de uma avaliação ampla e sistemática do potencial dos aquíferos é, ao mesmo tempo, causa e efeito da ausência de política do setor (Hirata et al. 2006). Os programas de proteção, quando existentes, estão muito defasados com respeito à sua importância real. Nesse sentido, a definição e implementação de políticas consistentes e pragmáticas de proteção das águas subterrâneas é urgente em todos os estados brasileiros. Essa política deve priorizar a definição de zonas críticas onde:
  • Aa explotação das águas subterrâneas seja realizada de forma intensa; 
  • O recurso hídrico subterrâneo seja insubstituível por outras fontes de água; e 
  • Exista uma clara presença de fontes potenciais de contaminação que ponha em perigo os aquíferos. 
Nessas zonas críticas, deveriam ser priorizados os estudos de detalhe com vistas à solução do problema. Nos primeiros dois casos, o conhecimento da hidráulica e da potencialidade do recurso e das demandas a que estão sujeitas as águas subterrâneas permitirá definir a melhor forma de explotação do recurso, inclusive com o disciplinamento de perfurações de poços e sua explotação, através de outorgas dadas pelo órgão gestor.
  • No terceiro caso, o enfoque é dirigido à proteção da qualidade das águas subterrâneas. Nesse caso, a delineação de áreas críticas deverá ser realizada através de mapas de vulnerabilidade à contaminação de aquíferos, para a proteção do próprio aquífero, e de perímetro de proteção de poços ou fontes para a proteção de mananciais de abastecimento público ou estratégico. Essas delineações, juntamente com o cadastro de fontes potenciais de contaminação, permitirão identificar quais áreas apresentam maior perigo e demandam atenção ambiental; e estabelecer, nesses locais, o monitoramento regional ou priorizar estudos de detalhe.
Adicionalmente, apresentam-se como importantíssimas a avaliação econômica do recurso hídrico subterrâneo e os custos econômicos, sociais e ecológicos envolvidos em sua explotação, inclusive aqueles associados à superexploração e à contaminação de aquíferos.
  • A educação ambiental voltada para recursos hídricos e, em especial, à água subterrânea, é também um instrumento relevante para a gestão. É através dela que a atual e as futuras gerações poderão entender o papel do recurso hídrico subterrâneo e, assim, valorizar a água em sua forma menos visível, mas igualmente importante.
Por fim, embora os recursos hídricos subterrâneos exerçam um papel fundamental para o desenvolvimento humano no país, sua gestão atualmente não faz jus ao seu caráter estratégico. O desafio que se impõe aos gestores públicos, à sociedade e aos usuários de água, é de construir e articular ações que traduzam uma nova forma de relação entre homem, solo e água.

Águas subterrâneas