terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Sustentabilidade como Campo Discursivo

A Sustentabilidade como Campo Discursivo

  • Conforme exposto acima, o conceito de discurso como expressão e exercício de poder pressupõe a sustentabilidade como um campo discursivo onde uma pluralidade de forças e interpretações disputam entre si o reconhecimento como “o discurso verdadeiro” sobre o assunto. 
Embora a sustentabilidade presuma, como campo, um substrato comum identificado com a idéia de um “futuro viável” para as relações entre a sociedade e a natureza, esta base comum é muito vaga e permite leituras diversas sobre o que significa um futuro viável e sobre quais os melhores meios de alcançá-lo.
  • Assim, à medida que o debate da sustentabilidade vai se tornando mais complexo e é difundido socialmente, ele vai sendo apropriado por diferentes forças sociais que passam a lhe imprimir o significado que melhor expressa seus valores e interesses particulares. Viola e Olivieri, analisando o cenário do ambientalismo contemporâneo, reafirmam as idéias de diversidade e conflito discutidas:
Em outras palavras, a luta pelo significado legítimo do desenvolvimento sustentável expressa diversas categorizações e classificações fundadas, obviamente, em práticas diferentes e ligadas a múltiplas cosmovisões provenientes de uma pluralidade de pontos de vista essencialmente conflitantes. ... Em outras palavras, os diferentes atores do ambientalismo formulam e pleiteiam suas diferenças internas dentro desse campo de significado, denominado ambientalismo multissetorial. ...
  • Nesse sentido, pode-se afirmar que as diversas posições do ambientalismo em relação ao significado da “transição em direção a uma sociedade sustentável” implicam lutas simbólicas pelo poder de produzir e de impor uma visão legítima de sustentabilidade (VIOLA & OLIVIERI, 1997: 212-3)
Não é objetivo deste ensaio mapear toda a diferenciação do campo da sustentabilidade, mas indicar as duas grandes matrizes interpretativas que nele se sobressaem – a título de tipos ideais. 
Essas duas matrizes polarizam o debate atual funcionando como um eixo ao longo do qual se posicionam toda a multiplicidade de tendências político-filosóficas.
  • A primeira matriz corresponde ao discurso oficial da sustentabilidade, que detém a hegemonia presente do campo, e que, para muitos efeitos, atua como “a verdade” sobre o tema. Compreende o desdobramento da proposta de sustentabilidade, originada nos trabalhos da Comissão Brundtland e reproduzida nas grandes conferências internacionais e nos programas governamentais sobre meio ambiente e desenvolvimento.
Tanto pela força de sua posição hegemônica, quanto pelo conteúdo que a constitui, esta interpretação também foi assimilada por setores não-governamentais e empresariais, em sua forma pura ou acrescida de adaptações ao perfil particular de cada grupo.
  • Trata-se de um discurso politicamente pragmático, que enfatiza a dimensão econômica e tecnológica da sustentabilidade e entende que a economia de mercado é capaz de liderar o processo de transição para o desenvolvimento sustentável, através da introdução de “tecnologias limpas”, da contenção do crescimento populacional e do incentivo a processos de produção e consumo ecologicamente orientados.
Este discurso defende a possibilidade de articular crescimento econômico e preservação ambiental, e entende que o dinamismo do sistema capitalista é não só capaz de se adaptar às novas demandas ambientais como também de transformá-las em novos estímulos à competitividade produtiva. 
  • Segundo essa visão, economia e ecologia são não só conciliáveis, como também é possível elevar a produção reduzindo o consumo de recursos naturais e a quantidade de resíduos industriais. De um modo geral, este é o discurso da Modernização Ecológica, mencionado acima, e representa um esforço de elaboração do discurso do desenvolvimento sustentável.
A argumentação econômica e técnico-científica ocupa uma posição privilegiada nessa matriz interpretativa e tende a deixar em segundo plano considerações éticas e políticas associadas a valores biocêntricos, de participação política e de justiça social.
  • A segunda matriz interpretativa se coloca como um contra-discurso à versão oficial e pode ser entendida como uma concepção complexa ou multidimensional de sustentabilidade que tenta integrar o conjunto de dimensões da vida individual e social. 
Politicamente, esta matriz tende a se identificar com os princípios da democracia participativa e a considerar que a sociedade civil organizada deve ter um papel predominante na transição para a sustentabilidade social. Prioriza o preceito de equidade social e desconfia da capacidade do mercado como alocador de recursos.
  • Com relação ao papel do Estado, pode-se dizer que essa matriz se subdivide em duas tendências principais: uma que suspeita da ação política estatal e defende a subordinação do Estado à Sociedade Civil, e uma segunda que defende a intervenção estatal como o melhor caminho de transição para a sustentabilidade.
Esta segunda tendência vê o Estado como agente indispensável nesse processo. Fundamenta esta posição com base no entendimento de que a sociedade civil isolada não é capaz de se contrapor às forças do mercado e na suposição de que o ambiente, como patrimônio público, não pode ser preservado sem a ação normativa e política do Estado. Advoga, entretanto, a democratização do Estado e sua articulação às forças da sociedade civil.
  • Para evitar o economicismo e o universalismo implícitos na proposta de desenvolvimento sustentável, essa matriz prefere utilizar a expressão “sociedade sustentável” para salientar as idéias de autonomia política e singularidade cultural de cada país tidas como necessárias à realização de uma sustentabilidade complexa (DIEGUES, 1992).
Os defensores dessa matriz complexa de sustentabilidade reagem aos reducionismos econômico e tecnológico que, segundo eles, caracterizam o discurso oficial. Consideram ainda que não há sustentabilidade possível sem a incorporação das desigualdades sociais e políticas e de valores éticos de respeito à vida e às diferenças culturais.
  • No que se refere à dimensão ecológica da sustentabilidade, pode-se observar uma diversidade de posições que oscilam entre visões mais ou menos antropocêntricas ou biocêntricas, embora com predomínio das primeiras.
De forma geral, esta matriz de sustentabilidade fundamenta-se numa crítica ampla da civilização capitalista ocidental que reprova o mito do progresso, o primado da razão instrumental, o fetiche consumista, a idolatria cientificista e o descentramento do homem e da vida na agenda de prioridades sociais (LEFF, 1999;BLOWERS, 1997; CRESPO, 1998; VIOLA & LEIS, 1995; ECKERSLEY, 1992).
  • Como vimos ao longo da análise, o enfoque de mercado detém a posição hegemônica no debate contemporâneo da sustentabilidade. 
Esta constatação, entretanto, coloca o dilema entre a efetiva implementação do projeto de sustentabilidade e um conjunto de evidências que demonstram a incapacidade do mercado em viabilizar uma sustentabilidade complexa, capaz de responder à magnitude da crise que vivemos, conforme discutimos no tópico anterior.

A Educação e a Sustentabilidade:
  • A maioria dos autores que analisa a proposta de uma educação para a sustentabilidade concorda que ela surgiu como uma tentativa de superar alguns problemas apresentados pela educação ambiental praticada nas escolas de diversos países da União Européia, como a Itália, a Espanha, a Inglaterra, a Irlanda, a Alemanha, o País de Gales, a Holanda e a Polônia, entre outros (STERLING, 2001; TILBURY, 1996; SAUVÉ, 1997).
Esses autores reconhecem, em geral, que a educação ambiental não apresentou os resultados esperados nas últimas décadas, nem se mostrou capaz de atender à crescente complexidade da crise contemporânea. 
  • Nesse sentido, acreditam que essas limitações se devem, em grande parte, à inadequação entre o paradigma cartesiano-mecanicista, prevalecente na sociedade e ciência ocidentais, e os problemas que hoje atingem a vida social, o ambiente, a economia e a cultura. 
Segundo essa compreensão, as mudanças necessárias e desejadas exigem um novo paradigma integrador – ou holístico – que a educação ambiental não conseguiu colocar em prática, embora tenha reconhecido essa necessidade retoricamente.
  • Em resumo, os autores argumentam que a educação ambiental assumiu, nesses contextos, expressões reducionistas em vários aspectos: ao tratar a crise ambiental como uma crise meramente ecológica; ao confundir o meio ambiente com a natureza; ao desprezar suas dimensões políticas, éticas e culturais; ao apresentar uma abordagem fragmentada e acrítica da questão socioambiental; ao aplicar metodologias disciplinares, não participativas e de baixa criatividade e ao propor respostas comportamentais e tecnológicas para problemas de maior complexidade (STERLING, 2001; TILBURY, 1996; SAUVÉ, 1997).
Embora reconheçam a importância da educação ambiental no processo de sensibilização para a questão ambiental e nas reivindicações de iniciativas sociais voltadas para a preservação socioambiental, acreditam que ela não teve suficiente fôlego para atender as expectativas de mudanças criadas em seu desenvolvimento.
  • Portanto, a partir de uma crítica e de um diagnóstico da educação ambiental experimentada em muitas escolas européias ao longo das últimas décadas, chegou-se à nova proposta de “educação para a sustentabilidade” ou “para o desenvolvimento sustentável”.
Abro aqui um parêntesis para estabelecer algumas conexões entre o debate internacional e nacional sobre a educação ambiental. Sem dúvida, são muitas as diferenças que separam as realidades européia e brasileira, como são diferentes as experiências de educação ambiental desenvolvidas nesses dois contextos sócio-culturais. 
Há, contudo, no debate europeu sobre a educação ambiental e na inserção do discurso da sustentabilidade no campo da educação, questões relevantes para a compreensão de nosso próprio processo e para a construção de nossos caminhos. 
  • Ou seja, guardadas as devidas diferenças, há nas críticas dirigidas às ações educacionais européias inegáveis pontos de contato com a trajetória da educação ambiental brasileira, que podem se constituir em focos de reflexão úteis ao desenvolvimento de nosso processo educacional.
Sabemos que a educação ambiental brasileira, sobretudo a partir da década de 90, vem desenvolvendo iniciativas teóricas e práticas renovadoras que se empenham em superar tanto a herança naturalista proveniente das ciências naturais quanto as visões reducionistas e politicamente conservadoras que estiveram presentes na formação do campo no Brasil. 
  • Já constatamos, nesse sentido, a presença de um significativo conjunto de educadores, pesquisas e experiências comprometidas com uma educação ambiental crítica e integradora, mas ainda não conhecemos com clareza – por falta de pesquisas e/ou acompanhamento sistemático abrangentes – o perfil e as tendências do campo da educação ambiental no Brasil e a extensão dessa renovação político-pedagógica nesse universo. 
A escassez de dados empíricos passíveis de generalização não autoriza afirmações definitivas sobre o estado da arte da educação ambiental no Brasil, mas também não nos impede de supor que ainda convivemos com expressivos setores que se orientam por visões ingênuas e conservacionistas.
  • Um dos poucos levantamentos – talvez o único publicado – que se esforça por fazer o mapeamento das experiências de educação ambiental desenvolvidas no Brasil, foi realizado pela comissão organizadora da I Conferência Nacional de Educação Ambiental em 1997. 
Na parte que elenca os problemas e desafios da educação ambiental no ensino formal, o documento fornece algumas pistas sobre essa situação:
– “O modelo de educação vigente nas escolas e universidades responde a posturas derivadas do paradigma positivista e da pedagogia tecnicista que postulam um sistema de ensino fragmentado em disciplinas, o que se constitui um empecilho para a implementação de modelos de educação ambiental integrados e interdisciplinares.
– A falta de material didático para orientar o trabalho de educação ambiental nas escolas, sendo que os materiais disponíveis em geral, estão distantes da realidade em que são utilizados e apresentam caráter apenas informativo e principalmente ecológico, não incluindo os temas sociais, econômicos e culturais, reforçando as visões reducionistas da questão ambiental.
– A ausência de uma visão integrada que contemple a formação ambiental dos discentes e a inclusão das questões éticas e epistemológicas necessárias para um processo de construção de conhecimento em educação ambiental.
– A ausência de conceitos e práticas da educação ambiental nos diversos níveis e modalidades de ensino reforça as lacunas na fundamentação teórica dos pressupostos que a sustentam” (MMA/MEC, 1997).
Assim, mesmo se considerarmos a relativa desatualidade dos dados acima, parece que um dos desafios colocados aos educadores que fazem educação ambiental no Brasil está em estender os níveis de discussão e de crítica conquistados pelas lideranças que estabelecem as referências conceituais, pedagógicas e políticas do campo ao conjunto de educadores e às práticas que o constituem.Por outro lado, conforme indicamos acima, a crescente permeabilidade entre os níveis locais e globais da sociedade e cultura mundiais faz com que as tendências mundiais - sejam materiais ou simbólicas, sobretudo aquelas protagonizadas pelos blocos hegemônicos que em grande medida definem a orientação dos organismos internacionais – tendem a nos influenciar com maior ou menor intensidade.
  • Entendo, enfim, que este debate se torna especialmente relevante quando consideramos que o discurso da sustentabilidade se expandiu aos quatro ventos e conquistou, apesar de toda sua ambiguidade, uma condição de unanimidade – quem é contra a sustentabilidade? – que pode induzir a confusões. 
Quando, portanto, se passa a propor, como faz a UNESCO, que o desenvolvimento sustentável é o objetivo mais decisivo da relação homem-natureza e que todo o processo educativo deveria ser redirecionado para o desenvolvimento sustentável, o mínimo que precisamos fazer é perguntar e discutir o que significa o desenvolvimento sustentável e o que é educar para o desenvolvimento sustentável (UNESCO apud SAUVÉ, 1997).
  • Retomo aqui a análise concordando com a crítica que aponta os limites da educação ambiental desenvolvida nas escolas européias e a necessidade de renová la a fim de realizar as mudanças culturais que dela se espera. Acredito, entretanto, que o novo discurso de “educação para a sustentabilidade ou para o desenvolvimento sustentável” levanta novos problemas e contradições que merecem ser discutidos.
Se considerarmos, por exemplo, a polissemia que caracteriza o discurso da sustentabilidade, mencionada acima, ficamos diante da incerteza de saber em que direção estamos nos orientando ao adotar uma “educação para a sustentabilidade”.
  • Ou seja, dada a diversidade de sentidos atribuíveis a esta noção e a incompatibilidade entre algumas de suas premissas, educar para a sustentabilidade converte-se numa expressão vazia e duvidosa. A imprecisão envolvida na proposta nos leva a comparar sua aceitação com a situação de um passageiro que embarca num trem sem conhecer seu destino.
Por essa razão, e pelo potencial que essas concepções têm de influenciar os educadores na escola e na prática de um projeto educativo, Sauvé defende a necessidade de discutir criticamente os conteúdos implícitos nos diversos discursos de sustentabilidade e de confrontar as diferenças entre eles. Importa, segundo a autora, ter clareza sobre os modelos de educação disponíveis ou impostos, seus objetivos, interesses e valores, seu público preferencial e sobre as forças que governam o campo (SAUVÉ, 1997).
  • Jickling questiona o discurso da educação para a sustentabilidade a partir de sua instrumentalidade. Argumenta que a educação dirigida a um fim específico, seja ele qual for, contraria o espírito da educação enquanto prática de liberdade. Entende que a educação pressupõe autonomia e pensamento crítico. Para ele, os alunos deveriam ser estimulados a pensar, julgar e se comportar por si próprios e não orientados para uma finalidade pré-determinada. 
Para Jickling, uma educação orientada para uma finalidade determinada sugere mais um treinamento para aquisição de certas habilidades do que um aprendizado envolvido com a compreensão. Refletindo sobre os fundamentos da proposta, argumenta:
É importante notar que essa posição se apóia em algumas suposições. Primeiro, supõe que o desenvolvimento sustentável é um conceito incontestável e, segundo, que a educação é uma ferramenta para ser usada para seu avanço. O primeiro ponto é claramente falso e deve ser rejeitado; existe considerável ceticismo sobre a coerência e eficácia do termo. A segunda suposição também pode ser rejeitada. A prescrição de uma perspectiva particular é incongruente com o desenvolvimento do pensamento autônomo (JICKLING, 1992: 8).
Sterling, em análise mais genérica sobre o campo educacional, concorda que, no momento atual, um extremo instrumentalismo domina suas políticas e práticas.
  • Esse instrumentalismo se manifesta num modelo pragmático de educação orientado pelas demandas da economia que tende a priorizar a profissionalização para o mercado de trabalho e valores relacionados à eficiência, controle de qualidade e competitividade. 
O autor comenta essa tendência afirmando que:
capturaram e mudaram a agenda educacional. Isto aconteceu em vários sistemas educacionais do ocidente. Este impulso poderoso parece ter começado através da influência das agências internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE e o Banco Mundial, os quais, a partir de 1980, produziram relatórios que apontavam a necessidade de reestruturar a educação de acordo com o ajuste estrutural da economia (STERLING, 2001: 39).
Nesse sentido, Sterling levanta a necessidade de diferenciar tipos de aprendizado e mudança que classifica de 1ª e 2ª ordens. Os processos de 1ª ordem são adaptativos e quantitativos, ocorrem dentro dos limites do modelo educacional pré-existente e buscam melhorar sua eficiência, embora sem questionar nem alterar os valores básicos já estabelecidos. 

A Sustentabilidade como Campo Discursivo

  • Podemos dizer que as tendências instrumentais acima verificadas, mais voltadas à conservação do “status qüo”, identificam –se com os processos de mudanças deste primeiro tipo. São, por esse motivo, também denominadas de “mudanças dentro da permanência”.
Os processos de 2ª ordem envolvem tipos de mudança e aprendizado reflexivos e integradores que estimulam a capacidade crítica – a autocrítica inclusive – a autonomia e a criatividade, e capacitam os educandos a resolver problemas e a realizar mudanças sociais e individuais qualitativas. 
  • Pondera que as duas ordens de mudança são necessárias ao desenvolvimento da educação, embora os problemas de alta complexidade que caracterizam a sociedade contemporânea e desafiam a transição para a sustentabilidade dependem, principalmente, de respostas de 2ª ordem.
Há no texto da UNESCO “Educação para um Futuro Sustentável” alguns elementos que podem enriquecer a presente análise, seja porque confirmam as tendências educacionais acima apresentadas, seja porque acrescentam novos pontos sugestivos. 
  • Esse trabalho, fruto de elaboração coletiva,8 foi apresentado como texto oficial de referência da Conferência Internacional de Tessalônica, Grécia, em 1997, que teve como tema “Educação e Conscientização Pública para a Sustentabilidade” e visava consolidar o conceito e as mensagens da educação para a sustentabilidade (UNESCO, 1999). 
No conjunto, o documento transparece a criação coletiva ao mesclar posições mais e menos avançadas. Seu texto reflete, também, a preocupação de responder à crítica direcionada ao discurso do desenvolvimento sustentável.
  • Primeiramente, observa-se na educação para a sustentabilidade uma tendência a destacar a necessidade de mudanças de atitudes e comportamentos individuais em detrimento de mudanças que envolvem processos políticos e econômicos. 
Assim, os problemas socioambientais aparecem mais relacionados à esfera privada que à esfera pública, e supõem uma desresponsabilização dos agentes coletivos públicos e privados, como por exemplo, o Estado e as corporações globais.
  • O texto aposta na importância da tecnologia como meio de superar os problemas ambientais, mas não problematiza os limites desse potencial. Isto é, embora a tecnologia possa contribuir com a preservação, ela não é uma panacéia e nem atua isoladamente sem o concurso de outras mudanças econômicas, políticas e culturais. 
O texto também não discute, entre outros aspectos, o risco e o descontrole envolvidos na produção e uso das modernas tecnologias, nem a concentração de poder que recai sobre os especialistas e a comunidade científica, nem a dependência tecnológica entre países pobres e ricos. Ao depositar excessiva esperança em respostas de alcance mais limitado, revela, portanto, uma abordagem simplista (BECK, 1992; GIDDENS, 1999; SACHS 1986, BRUSEKE, 1995).
  • Quando analisa as causas da crise socioambiental, o texto menciona o papel das desigualdades sociais nesse processo, mas centra sua ênfase explicativa na pobreza e no crescimento demográfico dos países periféricos. O silêncio sobre os impactos ambientais decorrentes da produção e consumo da riqueza e sobre a necessidade de definir limites à sua expansão provoca estranheza. 
Ao discutir a relação entre pobreza e degradação, defende a necessidade de crescimento dos países pobres para superar a miséria e, novamente, não discute a possibilidade de promover políticas de distribuição de renda. 
  • A compreensão de que a educação é um instrumento-chave para um fim determinado, no caso, “o futuro sustentável” ou certas condutas e estilos de vida “sustentáveis”, permeia todo o documento e reedita o problema do instrumentalismo discutido acima.
Há, enfim, em todo o texto, um apelo recorrente à participação dos indivíduos, à colaboração pública e à cidadania como fatores essenciais à sustentabilidade social, que merece ser discutido. Isto porque, no momento de formular as políticas estatais e privadas de crescimento que induziram à crise ambiental, os indivíduos e o público não foram consultados nem convidados a participar e, agora, quando se trata de reparar os danos causados, são estimulados a colaborar com as reformas. 
  • Concordo que a participação pública constitui um elemento indispensável na construção de políticas que visam o bem-estar social. Entretanto, a parcialidade do apelo, realizado desta forma, mais parece uma estratégia de privatização dos benefícios e socialização das perdas.
Em trabalho anterior, discutimos a ambiguidade e a banalização do uso das noções de cidadania e participação social nos discursos oficiais de educação ambiental, incluindo-se aí o caso brasileiro, e nos demais discursos liberais. 
Discutimos também a necessidade de diferenciar um modelo de participação e de cidadania passiva, conservadora e tutelada de um outro modelo ativo, transformador e autônomo (LIMA, 2002, CARVALHO, 1991; VIEIRA, 1998; DEMO, 1996).
  • A cidadania e a participação social são bastante invocadas no debate sobre a educação ambiental, mas em geral não estão relacionadas com uma crítica à dubiedade implícita no conceito liberal de cidadania. Refiro-me ao fato dessas noções serem, no contexto do capitalismo, freqüentemente usadas como meios de ocultar as desigualdades sociais e de legitimar sua manutenção. 
Cabe, portanto, lembrar que a outorga de uma igualdade jurídica formal, desacompanhada de outras conquistas econômicas, sociais e políticas, converte a cidadania num mero artifício para camuflar e perpetuar a exploração capitalista sobre a sociedade e a natureza (ALVES, 2000).
  1. Assim sendo, considero que, embora o texto da UNESCO “Educação para um Futuro Sustentável” se esforce em incorporar a crítica dirigida à proposta de sustentabilidade social, formulada pela Comissão Brundtland, ele não consegue superar as contradições e os limites nela manifestos. Nele prevalece a inspiração neoconservadora que caracteriza a proposta mencionada. 
Como texto institucional que referencia e fundamenta o discurso oficial da educação para a sustentabilidade, ele se apresenta como um programa de reformas dentro da ordem, uma vez que sugere mudanças adaptativas que garantem a reprodução sistêmica, mas não arranham a profundidade e a complexidade dos problemas vivenciados. No conjunto, podemos dizer que a proposta de educação para a sustentabilidade desenvolvida sob o signo do mercado promete muito e realiza pouco.
  • Pretende formular respostas aos limites paradigmáticos da educação ambiental analisada sem apresentar vias efetivas de mudança que ultrapassem os limites da conformidade. Colocada desta maneira tão ambígua, a proposta serve para conciliar conflitos, camuflar contradições e dissolver a diversidade do campo, não para estimular mudanças qualitativas na prática educacional.
Esse “conservadorismo dinâmico”, que realiza mudanças superficiais para garantir que o essencial seja conservado, representa talvez o maior obstáculo à concepção e implementação de uma proposta complexa e transformadora de sustentabilidade.  No entanto, uma educação crítica e integradora pode ajudar a superar tal obstáculo.

Outras Considerações:
  • A título de conclusão, e para não ficar restrito à tarefa crítica de desconstrução, quero sugerir algumas pistas para a reflexão dos educadores ambientais interessados na busca de novos caminhos.
Como vimos, é desejável estimular a discussão e a compreensão crítica da crise socioambiental, problematizando a diversidade de concepções de sustentabilidade apresentadas em seu argumentos, valores, objetivos, posições ético-politicas e em suas implicações sociais. Esse exercício de diferenciação e esclarecimento auxilia o educador a escolher, conscientemente, os caminhos que quer seguir em seu projeto e prática educativa.
  • Jickling, embora crítico de uma “educação para a sustentabilidade” por causa de seu caráter instrumental, propõe uma outra abordagem onde o tema da sustentabilidade seja apresentado e discutido com os alunos, de uma forma que permita-os: conhecer os argumentos favoráveis e contrários ao discurso, avaliar o conjunto da argumentação e participar deste debate. 
Segundo ele, a discussão visa revelar a diversidade de visões de mundo envolvidas no debate, de modo que os alunos não sejam “educados para a sustentabilidade”, mas capacitados a comparar, debater e julgar por si próprios as diversas posições manifestas no debate e aquelas que lhes parecem mais sensatas. 
  • Segundo ele, somente dessa maneira podemos dizer que se trata de uma abordagem educacional, pois a outra, ao procurar “educar para algo”, perde o sentido educativo (JICKLING, 1992). Sterling toma emprestado de Einstein uma construção simples e significativa para a prática educacional que diz:
Nenhum problema pode ser resolvido a partir da mesma consciência que o criou. Precisamos aprender a ver o mundo renovado (EINSTEIN apud STERLING, 2001).
Precisamos ver diferente, deslocar e renovar nosso ponto de vista para compreender e agir diferentemente. Aprendizado e mudança são inseparáveis, pois não é possível mudar sem aprender (ver o novo), ou aprender sem mudar (STERLING, 2001).
  • A idéia de aprendizado, em sentido amplo, adquire assim uma importância central no debate contemporâneo da sustentabilidade. O tipo de vida, educação e sociedade que teremos no futuro vão depender da qualidade, profundidade e extensão dos processos de aprendizado que formos capazes de criar e exercitar individual e socialmente. 
A educação e os educadores, em especial, que concentram as tarefas de conceber e pôr em prática os modelos de ensino e aprendizagem sociais têm uma responsabilidade singular nesse processo.
  • Clark discute a idéia de “sociedade aprendiz” e define-a como aquela capaz de se autocriticar, autocompreender e criar novas visões de mundo e cursos de ação, de acordo com a necessidade histórica. 
Essa concepção de sociedade aprendiz transcende os limites de uma sociedade (ou sistema) que funciona e se esgota nos objetivos de produzir e reproduzir-se, e supõe outras capacidades como: autoconhecer-se e conhecer seu ambiente numa perspectiva dinâmica; refletir e tirar conclusões do resultado de suas ações, inclusive as não-exitosas; discernir os momentos em que mudanças se impõem, ter a flexibilidade de implementar as mudanças julgadas necessárias, fazer escolhas inteligentes e priorizar iniciativas cooperativas, entre outras.
  • Está claro que a vida exige ambas as polaridades. Processos de aprendizado de 1ª e de 2ª ordens, repetição e criação, estabilidade e mudança, ordem e liberdade são faces inseparáveis e complementares da realidade que assumem a condição de prioridade relativa em cada conjuntura histórica. 
As características dos atuais modelos de sociedade e de educação demonstram que eles têm sido desproporcionalmente governados por princípios instrumentais, mecânicos e competitivos. 
  • Esse ambiente conjuntural tanto reduz as possibilidades da reflexividade e da criatividade prosperarem no meio social quanto dão sinais de que estamos no pico de uma onda de mutação que pode ser bem ou mal aproveitada (CLARK, 1989).
Construir, portanto, uma educação ambiental complexa, capaz de responder a problemas igualmente complexos, implica em ir além de uma “sustentabilidade de mercado” reprodutivista, fragmentária e reducionista. 
  • Pressupõe a capacidade de aprender, criar e exercitar novas concepções e práticas de vida, de educação e de convivência – individual, social e ambiental – capazes de substituir os velhos modelos em esgotamento.
Esta renovação já está em movimento nos subterrâneos da presente sociedade através de diversas iniciativas alternativas, atomizadas em diversos campos de conhecimento e atividade, embora ainda subsistam num plano não-dominante dentro do sistema global. 
  • Uma das tarefas estratégicas para os educadores ambientais interessados numa mudança paradigmática está em pesquisar, relacionar – destaca-se aqui o papel das redes –, selecionar e multiplicar o potencial positivo dessas experiências já existentes na resposta aos problemas aqui discutidos. 
Importa também, nesse sentido, ter presente a relação de interdependência que articula o sistema educacional e o sistema social global, de modo a explorar as sinergias capazes de promover experiências de educação, de vida e sociedade mais integradas e saudáveis.

A Sustentabilidade como Campo Discursivo