quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O Consumo e o Desperdício: A Desigualdade

Consumo e Desperdício: As duas Faces das Desigualdades

Ana Tereza Caceres Cortez
  • Em qualquer cultura, os bens funcionam como manifestação concreta dos valores e da posição social de seus usuários. Na atividade de consumo desenvolvem-se as identidades sociais e sentimos que pertencemos a um grupo e que fazemos parte de redes sociais. 
O consumo envolve também coesão social, produção e reprodução de valores e é uma atividade que envolve a tomada de decisões políticas e morais praticamente todos os dias. 
  • Quando consumimos, de certa forma manifestamos a forma como vemos o mundo. Há, portanto, uma conexão entre valores éticos, escolhas políticas, visões sobre a natureza e comportamentos relacionados às atividades de consumo.
Um dos símbolos do sucesso das economias capitalistas modernas é a abundância dos bens de consumo, continuamente produzidos pelo sistema industrial. Essa fartura passou a receber uma conotação negativa, sendo objeto de críticas que consideram o consumismo um dos principais problemas das sociedades industriais modernas.
  • Consumismo é o ato de consumir produtos ou serviços, muitas vezes, sem consciência. Há várias discussões a respeito do tema, entre elas o tipo de papel que a propaganda e a publicidade exercem nas pessoas, induzindo-as ao consumo, mesmo que não necessitem de um produto comprado. Muitas vezes, as pessoas compram produtos que não tem utilidade para elas, ou até mesmo coisas desnecessárias apenas por vontade de comprar, evidenciando até uma doença.
Segundo o Dicionário Houaiss, consumismo é “ato, efeito, fato ou prática de consumir (‘comprar em demasia’)” e “consumo ilimitado de bens duráveis, especialmente artigos supérfluos”.
  • O simples “consumo” é entendido como as aquisições racionais, controladas e seletivas baseadas em fatores sociais e ambientais e no respeito pelas gerações futuras. Já o consumismo pode ser definido como uma compulsão para consumir. Mas como fazer para não aderir ao perfil consumista? A fórmula clássica e aparentemente simples é distinguir o essencial do necessário e o necessário do supérfluo. 
No entanto é muito difícil estabelecer o limite entre consumo e consumismo, pois a definição de necessidades básicas e supérfluas está intimamente ligada às características culturais da sociedade e do grupo a que pertencemos. O que é básico para uns pode ser supérfluo para outros e vice-versa.

A sociedade de consumo:
  • O termo sociedade de consumo é uma das tentativas para entender as mudanças que vêm ocorrendo nas sociedades contemporâneas e refere-se à importância que o consumo tem recebido na construção das relações sociais e na formação e fortalecimento das nossas identidades.
Dessa maneira, o nível e o estilo de consumo tornam-se a principal fonte de identidade cultural, de participação na vida coletiva, de aceitação em um grupo e de distinção com os demais.
  • O consumo está presente nas diversas esferas da vida social, econômica, cultural e política. Nesse processo, os serviços públicos, as relações sociais, a natureza, o tempo e o próprio corpo humano transformam-se em mercadorias.
O consumismo emergiu na Europa Ocidental no século XVIII, e vem se espalhando rapidamente para distintas regiões do planeta, as sumindo formas diversas. O início do século XXI está sendo marcado por profundas inovações que afetam nossas experiências de consumo, como o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, a biotecnologia, o comércio por meio da internet, o debate ambientalista, a globalização etc. Ao mesmo tempo, novos tipos de protestos e reações ao consumismo emergem, exigindo uma nova postura do consumidor.
  • Com a expansão da sociedade de consumo, amplamente influenciada pelo estilo de vida norte-americano, o consumo transformou-se em uma compulsão e um vício, estimulados pelas forças do mercado, da moda e da propaganda. 
A sociedade de consumo produz carências e desejos, tanto materiais quanto simbólicos, e os indivíduos passam a ser reconhecidos, avaliados e julgados por aquilo que consomem, vestem ou calçam, pelo carro e pelo telefone celular que exibem em público.
  • A qualidade de vida e a felicidade têm sido cada vez mais associadas e reduzidas às conquistas materiais. Tal posicionamento acaba levando a um ciclo vicioso, em que o indivíduo trabalha para manter e ostentar um nível de consumo, reduzindo o tempo dedicado ao lazer e a outras atividades e relações sociais.
A politização do consumo: 
E as estratégias dos consumidores
  • Para a construção da cidadania um dos pressupostos básicos é que os cidadãos lutem pela conquista dos direitos definidos como legítimos.
Isso faz com que a noção de cidadania se torne mais ampla, incorporando novos elementos, como o direito à autonomia sobre o próprio corpo, o direito à qualidade ambiental, o direito do consumidor, o direito à igualdade, o direito à diferença e outros (Dagnino,1994).
  • A partir dessas noções, surgem novas questões relacionadas ao exercício da cidadania como, por exemplo, as atividades de consumo. Consumo e cidadania podem ser pensados de forma conjunta e inseparável, já que ambos são processos culturais e práticas sociais que criam o sentido de pertencimento e identidade, pois quando selecionamos e adquirimos bens de consumo, seguimos uma definição cultural do que consideramos importante para nossa integração e diferenciação sociais.
Como destaca Portilho (2004), num mundo globalizado, onde a própria atividade política foi submetida às regras do mercado, o exercício da cidadania não pode ser desvinculado do consumo, que é uma das atividades onde atualmente sentimos que pertencemos a um grupo e que fazemos parte de redes sociais.
  • O consumidor pode atuar de forma subordinada aos interesses do mercado, ou pode não ser submisso às regras impostas de fora, erguendo-se como cidadão e desafiando os mandamentos do mercado.
Além disso, o consumidor também pode ser crítico e optar por ser um cidadão ético, consciente e responsável, o que o leva também a novas formas de associação, de ação política, de lutas sociais e reivindicação de novos direitos.
  • Por um lado, é consenso que o consumo é realizado porque se espera que produza satisfação (biológica ou simbólica). Por outro, o consumo também pode gerar decepção e insatisfação. 
Dessa maneira, após experimentar decepções, o consumidor tem, basicamente, duas formas de reação. Se o consumidor recebeu um produto com defeito, terá uma reação individual a um problema individual, pois provavelmente ele o devolverá ou pedirá um desconto. 
  • Mas, se entender que o produto adquirido ou o serviço contratado não é seguro ou traz prejuízos sociais e ambientais, será o interesse público que está em pauta, tornando mais provável um engajamento numa manifestação pública. 
Um consumidor que viveu uma decepção desse tipo poderá estar mais bem preparado que antes para questionar a ordem social e política em geral, podendo se transformar numa importante experiência de mobilização e politização.
  • O movimento de consumidores utiliza algumas estratégias como formas de politização do consumo: cooperativas, boicotes, rotulagens etc. Trata-se de um tipo de pressão política que extrapola as ações nos locais de trabalho para atuar nas relações de consumo.
A organização de cooperativas ou redes de consumo fortalece uma percepção coletiva sobre a exploração e os abusos que acontecem nessa esfera. As cooperativas permitem aos consumidores esquivar-se, mesmo que parcialmente, das relações de exploração na esfera do consumo.
  • Um boicote pode ser definido como uma recusa planejada e organizada a comprar bens ou serviços de certas empresas, lojas e até mesmo países. 
Os boicotes servem para uma ampla variedade de propósitos: protesto contra aumentos injustificáveis de preços, pressão complementar fortalecendo ou mesmo substituindo uma greve, fortalecimento de organizações de trabalhadores, demonstração de descontentamento com a política salarial ou ambiental de uma empresa etc. 
  • As empresas são particularmente sensíveis aos boicotes, uma vez que podem ter sérios prejuízos financeiros. O sucesso de um boicote de consumidores depende de vários fatores, tais como o nível de organização da sociedade, o tamanho do mercado boicotado, a natureza e o número de mercadorias boicotadas, a interferência de governos e empresas etc.
A ecorrotulagem, ou rotulagem ambiental, consiste na atribuição de um rótulo ou selo a um produto ou a uma empresa, informando sobre seus aspectos ambientais. Dessa maneira, os consumidores podem obter mais informações que os auxiliarão nas suas escolhas de compra com maior responsabilidade e compromisso social e ambiental.
  • A rotulagem ambiental pode ser considerada também uma forma de fortalecer as redes de relacionamento entre produtores, comerciantes e consumidores.
A economia solidária é uma prática de colaboração e solidariedade baseada nos valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, no lugar da acumulação da riqueza e de capital (Gomes, 2007). 
  • Apoia-se numa globalização mais humana e valoriza o trabalho, o saber e a criatividade, buscando satisfazer plenamente as necessidades de todos. 
Constitui-se num poderoso instrumento de combate à exclusão social e congrega diferentes práticas associativas, comunitárias, artesanais, individuais, familiares e cooperação entre campo e cidade (Arruda, 2001).
  • Segundo o MMA/MEC/Idec, ao traduzirem as insatisfações pessoais (como defeitos em um produto, propaganda abusiva, processos produtivos poluentes, exploração da mão de obra etc.) em questões públicas, os consumidores organizados reivindicam a substituição de certas regras, leis e políticas existentes por outras novas ou ainda o cumprimento das já existentes.
Neste caso, decepções e frustrações na esfera do consumo privado podem provocar maior interesse por questões públicas e maior participação em ações coletivas, pois formular, expressar, justificar e reivindicar uma insatisfação a torna coletiva e pública. (2005, p.23).
  • Portanto, as atividades de consumo operam na interseção entre vida pública e privada e por meio do debate sobre a relação entre consumo e meio ambiente a questão ambiental finalmente pode ser colocada num lugar em que as preocupações privadas e as questões públicas se encontram. 
Surge então a possibilidade de que um conjunto de pessoas busque criar espaços alternativos de atuação, enfrentamento e busca de soluções coletivas para os problemas que parecem ser individuais.

Consumo e Desperdício: As duas Faces das Desigualdades

Documentos, discussões: 
E normatização sobre o consumo:
  • O consumerismo é um movimento social organizado, próprio da sociedade de consumo, que surge como reação à situação de desigualdade entre produtores e consumidores. 
Esse movimento deu origem ao Direito do Consumidor, uma disciplina jurídica que visa estudar as relações de consumo, corrigindo as desigualdades existentes entre fornecedores e consumidores, tais como imperfeições do mercado e sua incapacidade de solucionar, de maneira adequada, uma série de situações como práticas abusivas, acidentes de consumo, injustiças nos contratos de adesão, publicidade e informação enganosa, degradação ambiental, exploração de mão de obra e outros (Idec, 2001).
  • Além de estabelecer os direitos do consumidor, o Código de defesa do consumidor estabelece as normas de conduta que devem ser seguidas pelos fornecedores de produtos e serviços de consumo.
O objetivo é preservar a vida, a saúde, a segurança e a dignidade do consumidor, responsabilizando o fornecedor pela qualidade do que coloca no mercado e exigindo deste a informação necessária sobre seus produtos, além da garantia de reparação de eventuais danos causados ao consumidor, ao meio ambiente ou à comunidade. A divulgação dos direitos do consumidor é essencial para que produção e consumo sejam vistos como áreas de interesse coletivo.
  • Entre os direitos do consumidor (artigo 6º) estão a educação para o consumo, proteção contra a publicidade enganosa e abusiva e métodos comerciais ilegais, proteção contra práticas e cláusulas abusivas nos contratos, prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, adequação e prestação eficaz dos serviços públicos em geral, acesso à justiça e aos órgãos administrativos, facilitação da defesa em favor do consumidor e informação adequada e clara sobre produtos e serviços.
O consumidor contribui para a melhoria dos produtos e serviços e para a transformação dos padrões e níveis de consumo e a consequente melhoria de vida da coletividade exigindo nota fiscal dos fornecedores de produtos e serviços, participando de ações e campanhas das organizações de defesa do consumidor e lutando por seus próprios direitos.
  • Ao emitir nota fiscal, o fornecedor é obrigado a pagar impostos que deverão ser usados pelo governo para construir escolas, hospitais, rodovias etc. Quando as pessoas participam de entidades de defesa do consumidor somam força com outros consumidores na luta pela garantia dos direitos de todos. Com essa luta crescente inibem os fornecedores que agem em desacordo com a lei.
Aos poucos, a “soberania do consumidor”, propagada pelo neoliberalismo, pode se mover em direção à “cidadania do consumidor”, em que o consumo se transforma numa prática social, política e ecológica.
  • A Agenda 21, documento assinado durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92), deixa clara a preocupação com o impacto ambiental de diferentes estilos de vida e padrões de consumo:
Enquanto a pobreza tem como resultado determinados tipos de pressão ambiental, as principais causas da deterioração ininterrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção, especialmente nos países industrializados. Motivo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção provocam o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios. (capítulo 4 da Agenda 21)
  • A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em 2002 em Johanesburgo (África do Sul) instituiu o plano de ação Consumo Sustentável e Sociedade de Consumo, declarando que mudanças fundamentais na forma de as sociedades produzirem e consumirem são indispensáveis para a conquista de um desenvolvimento sustentável global.
Outro evento que trouxe uma contribuição importante para esse tema foi a 12ª reunião da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas em abril de 2004, que alavancou o programa decenal de produção e consumo sustentáveis exigido em Johanesburgo em 2002. 
  • Além disso, essa reunião deu um foco importante à água, ao saneamento e aos assentamentos humanos, todos elementos essenciais do consumo sustentável e também chave para a conquista de outra prioridade central das Nações Unidas – a eliminação da pobreza em todo o mundo.
Impactos ambientais e sociais do consumo:
  • Há evidências de que o padrão de consumo das sociedades ocidentais modernas, além de ser socialmente injusto e moralmente indefensável, é ambientalmente insustentável. 
A crise ambiental mostrou que não é possível a incorporação de todos no universo de consumo em função da finitude dos recursos naturais, não somente para serem explorados como matéria-prima, mas também por receberem resíduos após a utilização dos produtos.
  • O ambiente natural está sofrendo uma exploração excessiva que ameaça a estabilidade dos seus sistemas de sustentação: exaustão de recursos naturais renováveis e não-renováveis, degradação do solo, perda de florestas e da biodiversidade, poluição da água e do ar e mudanças climáticas, entre outros.
Quase metade da população mundial (47%) vive em áreas urbanas, e espera-se que esse número cresça 2% ao ano entre 2000 e 2015 (United Nations Population Division, 2001). 
  • Não há dúvida de que a aglomeração populacional, os padrões de consumo e de deslocamento e as atividades econômicas urbanas exercem intensos impactos sobre o meio ambiente em termos de consumo de recursos e eliminação de resíduos. E o resultado dessa exploração excessiva não é dividido igualmente para todos, e apenas uma minoria da população da Terra se beneficia dessa riqueza.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Fundo Monetário Internacional (FMI) e a World Wildlife Foundation (WWF), há uma real e visível relação entre as atividades econômicas e a qualidade das características naturais do planeta, como a água, ar, solo e biodiversidade. 
  • O Índice Planeta Vivo é um indicador criado pela WWF que reflete a saúde dos ecossistemas do planeta: florestas, oceanos, rios e outros sistemas naturais. Entre 1970 e 2000, o índice perdeu cerca de 35%; uma tendência global que sugere que estamos deteriorando os ecossistemas naturais a um ritmo nunca visto na história da humanidade.
O crescimento econômico mediante a depleção do capital natural e comprometimento da manutenção da vida futura acarreta o chamado overshoot, que é o estágio em que o meio ambiente não mais consegue se regenerar e prover recursos futuros. Esse ponto foi atingido no início da década de 1980, quando as atividades humanas excederam a capacidade da biosfera (WWF, 2004).
  • Estudos comprovam que, atualmente, o homem ocupa 83% do planeta e a destruição do ecossistema já supera em 20% sua capacidade de regeneração. Em outras palavras, pode-se dizer que o mundo consome mais recursos naturais do que a própria capacidade de regeneração (Boff, 2003).

Consumo e Desperdício: As duas Faces das Desigualdades