sábado, 20 de fevereiro de 2016

Agricultura e Sustentabilidade

Florianópolis, 09/04/2014. A Associação Cultural e Familiar Agroecológica 
do município de Presidente Nereu trouxe à Assembleia Legislativa, 
uma exposição com produtos de 22 famílias agricultoras 
do Alto Vale do Itajaí.

Agriculturas no Brasil: 
Diferentes padrões com resultados distintos:
  • A atividade agrícola, enquanto produção de plantas e animais num local determinado, visando a alimentação de uma comunidade, remonta há pelo menos 10.000 anos a.C (Mazoyer e Roudart, 1997; Diamond, 2003; Olson, 2003)1. 
Na pré-história, o uso do fogo para limpeza de áreas, de algumas ferramentas para cultivo terra e de plantios sem preparo do solo eram algumas das práticas que permitiram a formação dos primeiros aglomerados humanos, mais ou menos fixos. De lá para cá, muita coisa mudou. A agricultura se espalhou pelo mundo inteiro.
  • As plantas cultivadas e os animais criados passaram por modificações genéticas que permitiram sua adaptação a diferentes ambientes, sem perdas drásticas de produtividade. Aumentou-se a diversidade de produtos obtidos por meio da atividade agrícola. 
O avanço do conhecimento sobre o funcionamento dos diferentes sistemas que compõem e sustentam a vida na Terra permitiu o desenvolvimento de técnicas que possibilitaram o aumento da oferta de alimentos e a melhoria da dieta humana, pelo menos para o segmento da população mundial que dispõe de acesso à alimentação nutricionalmente equilibrada. Mas duas coisas não mudaram: para produzir alimentos que atendam às necessidades da população humana é necessário fazer agricultura e, praticá-la, causa impactos no ambiente.
  • Ao longo da história da humanidade, a agricultura influencia e é influenciada por mudanças políticas, sociais e culturais (Diamond, 2003; Olson, 2003)2. O Brasil, país de dimensões continentais, que guarda desigualdades sociais e econômicas acentuadas, tem sua história marcada pela agricultura. 
Desde o século XVI, quando o Brasil colônia era exportador de pau-brasil, até os dias de hoje, a riqueza do país se apóia em produtos primários, com produtos agrícolas respondendo por parte importante do Produto Interno Bruto (PIB).
  • Em 2000, a agricultura brasileira empregou cerca de 24% de toda a população do país e participou com cerca de 7,6% da formação do PIB, o que correspondeu a R$86 bilhões. Desde a matéria-prima agrícola até sua industrialização e comercialização, incluindo os setores fornecedores de insumos, máquinas e implementos, naquele ano a contribuição da agricultura foi de cerca de 27% do PIB, ou seja, perto de R$306,86 bilhões.
Em 2002, o PIB primário da agricultura, que indica o desempenho da atividade agrícola e pecuária, sem o cômputo da parcela referente aos insumos, processamento e distribuição dos produtos, foi de R$125,79 bilhões, ou seja, cerca de 11,5% do PIB total. 
  • A performance positiva do PIB total foi impulsionada basicamente pelo PIB primário da agricultura, que teve recorde de crescimento em 2002, alcançando a taxa de 17,46%, isto é, cerca de duas vezes mais do que o resultado registrado em 2001, que cresceu 8,65%5. 
O PIB global da agricultura brasileira (lavouras e pecuária), com o cômputo da parcela referente aos insumos, processamento e distribuição dos produtos, cresceu 8,37% em 2002, fechando o ano com um total de R$424,32 bilhões. A preços de 2002, o resultado reflete um ganho de R$32,79 bilhões na comparação com 2001.
  • Neste ano, a atividade agrícola representava 27% da renda nacional, sendo que em 2002 esse percentual fechou em 29%. Conforme dados de 2003, os chamados complexos da soja e de carnes, juntos, contribuíram com cerca de 40% das exportações agrícolas, estas aumentando em 23% se comparadas a 2002.7 
Nos últimos dez anos constata-se que o PIB brasileiro aumentou cerca de 20%, passando de cerca de R$1,37 trilhões em 1994 para cerca de R$1,65 trilhões em 2003, enquanto que o PIB do agronegócio aumentou em mais de 21% no mesmo período, passando de R$419 bilhões para R$508 bilhões.
  • Conforme salientam Barros e Silva (2004), os aumentos de produtividade contribuíram para a competitividade e eficiência do agronegócio brasileiro e foram alcançados graças a uma verdadeira revolução tecnológica. 
Em termos de balança comercial, a agricultura apresentou, em 2001, um superávit de US$19 bilhões, enquanto a balança comercial brasileira não passou de US$2,6 bilhões.9 Isto significa que as contas nacionais têm sido equilibradas pelos saldos positivos entre exportações e importações que o setor agrícola apresenta. 
  • As exportações deste setor alcançaram US$23,9 bilhões (15,8% acima de 2000) e as importações US$4,9 bilhões, dos quais US$1,2 bilhão refere-se ao trigo. Do total de US$58,2 bilhões exportados pelo País em 2001, 41,1% referem-se a produtos oriundos da agricultura, com especial destaque para o complexo soja (US$ 5,3 bilhões), carnes (US$ 2,5 bilhões), açúcar e álcool (US$2,4 bilhões) e calçados (US$ 1,4 bilhão). 
Para os anos de 2002 e 2003, os saldos agrícolas na balança comercial foram de 20,3 e 25,3 bilhões de dólares, respectivamente. Se considerarmos as barreiras não-tarifárias do comércio internacional, as medidas protecionistas e os subsídios para o setor, praticados pelos países ricos, percebe-se que a importância da agricultura brasileira torna-se ainda maior.

Agronegócio e agricultura familiar:
  • Nos últimos anos, nos meios acadêmicos brasileiros e no debate social sobre o papel do agronegócio e da agricultura familiar, tem sido comum apresentar esses dois “setores” como tendo interesses muito antagônicos. 
Vários estudos têm provado que, além de empregar um contingente significativo de pessoas, um segmento consolidado da agricultura familiar tem contribuído muito para as exportações e para o atendimento do mercado interno, em nada devendo às dinâmicas produtivas do agronegócio. 
  • Assim, parece equivocado associar agronegócio unicamente à agricultura patronal, esta por vezes pouco produtiva, bem como associar agricultura familiar exclusivamente à produção de subsistência.
Estudos feitos pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em convênio com a FAO – Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, com base nos dados do Censo Agropecuário 1995-1996, revelam que do total de 4.859.732 estabelecimentos rurais existentes àquela época no país, 85,2% pertenciam a grupos familiares, enquanto que 11,4% pertenciam à categoria patronal.
  • Esses estabelecimentos familiares receberam 25,3% dos financiamentos agrícolas e foram responsáveis por 37,9% do valor bruto da produção total (VBP) gerado pela agricultura brasileira naquele ano. Por outro lado, os chamados estabelecimentos patronais receberam 75% dos financiamentos e produziram 61% do VBP.
Esse mesmo estudo aponta que os estabelecimentos familiares respondiam por 50,9% da renda total agropecuária (RT) de todo o Brasil, equivalente a R$22 bilhões. A maior participação dos agricultores familiares na RT do que no VBP pode ser explicada pelo fato de a contabilização da renda desprezar os gastos de produção incorridos pelos agricultores.
  • Outro dado revelador diz respeito à renda total por hectare, demonstrando que a agricultura familiar é muito mais eficiente que a patronal, em todas as regiões brasileiras, produzindo uma média de R$104/ha/ano contra apenas R$44/ha/ano dos agricultores patronais. Número total, área total, valor bruto da produção (VBP) e financiamento total (FT) por categorias de estabelecimentos rurais existentes no Brasil, segundo os dados do Censo Agropecuário 1995-1996 (valor zero indica número desprezível).
Não resta dúvida, no entanto, que o processo histórico de modernização tecnológica da agricultura brasileira tem natureza excludente e tem por face mais visível o chamado apropriacionismo, ou seja, o processo progressivo de diminuição da fatia da renda do valor agregado final operado dentro das unidades de produção rural. 
  • Por outro lado, é crescente o reconhecimento de que, mesmo no extrato de agricultores considerados como agricultores familiares, a agricultura não é mais vista como uma atividade autônoma completamente dissociada de demandas externas, sejam impostas por mercados locais, sejam pela conjuntura estruturada em torno do grande agronegócio.
Renda total agrícola (RT) por hectare por ano (R$/ha/ano) dos estabelecimentos rurais patronais e familiares, segundo dados do Censo Agropecuário 1995-1996. Fonte: Guanziroli, C.E e Cardim, S.E.C.S. op. cit.
  • O caráter heterogêneo da agricultura brasileira, reflexo de ambientes diversos num país de dimensões continentais, se expressa tanto nas categorias patronal quanto familiar. No entanto, a agricultura familiar assume um caráter muito mais heterogêneo do que a agricultura patronal, por ser estruturalmente mais dependente das limitações e potencialidades do ambiente. 
Esse caráter heterogêneo da agricultura brasileira impede a adoção de padrões homogêneos e impõe desafios distintos, que serão abordados aqui apenas de forma genérica, para efeito de síntese.

Os desafios atuais da agricultura:
  • O bom desempenho econômico da agricultura evidencia seu dinamismo e sua importância no Brasil. Entretanto, é necessária uma análise mais detalhada da situação e dos desafios impostos aos agricultores brasileiros, visto que seus resultados não têm proporcionado, de imediato, uma efetiva e generalizada melhoria da qualidade de vida no meio rural.
Em estudo realizado a partir da análise da evolução, entre 1985 e 1996, da produção de alimentos da cesta básica (arroz, feijão, mandioca, milho e leite) nas Mesorregiões Norte de Minas e Jequitinhonha, em Minas Gerais, que apresentam Índice de Desenvolvimento Humano muito baixo, 
  • Fernandes Filho et al. (1999) mostram que a indústria rural manteve e provavelmente aumentou a sua importância em termos de geração de renda na agricultura regional, com significativa contribuição para a renda monetária dos estabelecimentos familiares (com até 100 hectares), apesar de ter havido queda da produção e do número de estabelecimentos que informaram desempenhar atividades de transformação em bases artesanais de alimentos.
Por outro lado, estudos realizados pela Embrapa Soja sobre a área trabalhada pelos produtores de soja nas diversas unidades da federação, na década de 1990, indicam que a grande expansão deste cultivo no Centro-Oeste se realizou e está se realizando de forma extensiva, aproveitando economias de escala, enquanto que no Sul (Rio Grande do Sul e Paraná) houve e está havendo uma tendência de aumento da área das unidades produtivas, pois a produção de grãos de soja não se sustenta mais em pequenas unidades que procuram fazer dessa atividade a sua principal fonte de receita.
  • Dados censitários indicam que houve uma diminuição de 177.206 estabelecimentos, que a grande produção de soja nos anos 1990 estava concentrada em propriedades cuja área era superior a 200 ha (65%) e que a tendência é dessa produção se concentrar cada vez mais em propriedades acima dos 500 ha.
Barros (2003), discutindo o Plano de Safra 2001/2002, indica que este tinha por estratégia concentrar apoio na esfera financeira e ajustar apenas moderadamente os preços, contando com o câmbio para incrementar a rentabilidade do setor. 
  • Na safra 2000/2001, o arroz, por exemplo, que conta com estoques públicos elevados, teve seu preço reduzido em 5%, enquanto que o milho foi reajustado em apenas 2%, apesar de ter apresentado expansão de produção da ordem de 29%. Esses fatos colocam em evidência mudanças no padrão agrícola brasileiro, que vêm ocorrendo de meados da década de 1990 para cá. 
A agricultura não está mais sendo vista como uma atividade primária isolada, estando cada vez mais associada aos setores industriais e comerciais. Além disso, mudanças globais fazem com que países dependam da importação de alimentos e que programas nacionais agrícolas, que antes visavam a auto-suficiência, hoje contribuam para o excesso de produção.
  • Atualmente, um grande desafio para o agricultor-produtor de alimentos é entender que não basta produzir. É necessário considerar toda a cadeia que leva o produto ao consumidor e isto exige profissionalização da atividade agrícola. Os tradicionais ciclos de preços de mercadorias perderam sua estabilidade (as fases de preço baixo eram seguidas, com confiança relativa, por fases de preço alto). 
A especialização cada vez maior de alguns segmentos da produção agrícola, como a avicultura, suinocultura, fruticultura, cafeicultura e outros, e a diminuição de sistemas de produção diversificados, de pequeno e médio porte, resultam em menor flexibilidade para reduzir a produção, em resposta a baixos preços de um dado produto.
  • Conseqüentemente, as fases de preço baixo ficam mais longas e as de alto preço, mais curtas, a não ser que se apliquem outros mecanismos reguladores de preço, além da quantidade. Como resultado, muitos produtores tentam participar das cadeias de produção de valor agregado. 
As cadeias de produção de alimento tentam estender a transparência e a rastreabilidade do produto agrícola até a propriedade, e exigem medidas de manejo ambiental, bem-estar de trabalhadores e de animais e segurança alimentar, as quais criam novas tarefas e responsabilidades para os agricultores, extensionistas e pesquisadores.
  • Consumidores dos países industrializados, importadores de produtos primários de países como o Brasil, exigem uma variedade cada vez maior de critérios de qualidade antes de comprar alimentos, alguns deles inatingíveis. Estas mudanças causam grandes impactos na cadeia de produção de alimentos, com implicações mais drásticas na área da produção agrícola, especialmente entre pequenos e médios agricultores que não participam de organizações e/ou são pouco integrados em circuitos de comercialização. 
Duarte (1998), discutindo o desenvolvimento agrícola dos Cerrados, destaca que no Brasil a globalização e a modernização da agricultura trouxeram como correlatos do desenvolvimento econômico e tecnológico, a degradação e o esgotamento dos recursos naturais, bem como a concentração fundiária e de renda e, conseqüentemente, a exclusão e a violência no setor rural. 
  • Os cinco produtos agrícolas mais importantes que contribuem para as exportações (67% em 2002 e 60% em 2003)23 são produzidos por meio de práticas agrícolas, em geral, altamente sensíveis às relações entre meio ambiente, agricultura e o desenvolvimento (rural e nacional), pois estão, de uma forma ou de outra, associadas ao desmatamento, à erosão e à contaminação dos solos e dos mananciais hídricos. Embora a sustentabilidade da agricultura seja defendida e almejada por diferentes setores produtivos e por diferentes segmentos sociais, ela ainda se apresenta utópica. 
As alternativas de manejo agrícola sustentável, que permitem a minimização de danos ambientais, esbarram muitas vezes em interesses econômicos distintos. Além disso, mesmo quando se observa uma melhora na relação agricultura e ambiente, por meio de tecnologias consideradas menos agressivas, esta nem sempre está associada a uma sustentabilidade social. Ou seja, a sustentabilidade está se impondo muito mais pelo aporte da questão ambiental do que pelo lado da justiça social.
  • Constata-se, pois, que a atividade agrícola, reconhecidamente essencial para a produção de alimentos e de produtos de primeira necessidade para o bem-estar humano (fibras, couros etc.), gera inúmeros desafios. 
De maneira geral, esses desafios são colocados tanto para governos e sociedade como para os agricultores e podem ser considerados a partir de cinco vertentes básicas:
  • Desafio ambiental - considerando que a agricultura é uma atividade que causa impactos ambientais, decorrentes da substituição de uma vegetação naturalmente adaptada por outra que exige a contenção do processo de sucessão natural, visando ganhos econômicos, o desafio consiste em buscar sistemas de produção agrícola adaptados ao ambiente de tal forma que a dependência de insumos externos e de recursos naturais não-renováveis seja mínima;
  • Desafio econômico - considerando que a agricultura é uma atividade capaz de gerar, a curto, médio e longo prazos, produtos de valor comercial tanto maior quanto maior for o valor agregado, o desafio consiste em adotar sistemas de produção e de cultivo que minimizem perdas e desperdícios, que apresentem produtividade compatível com os investimentos feitos, e em estabelecer mecanismos que assegurem a competitividade do produto agrícola no mercado interno e/ou externo, garantindo a economicidade da cadeia produtiva e a qualidade do produto;
  • Desafio social - considerando a capacidade da agricultura de gerar empregos diretos e indiretos, e de contribuir para a contenção de fluxos migratórios, que favorecem a urbanização acelerada e desorganizada, esse desafio consiste em adotar sistemas de produção que assegurem geração de renda para o trabalhador rural e que este disponha de condições dignas de trabalho com remuneração compatível com sua importância no processo de produção. Considerando o número de famintos no planeta, e particularmente no Brasil, é necessário que a produção de agrícola contribua para a segurança alimentar e nutricional. 
  • Considerando ainda que o contexto social não é uma externalidade de curto prazo do processo produtivo e, portanto, do desenvolvimento, é necessário construir novos padrões de organização social da produção agrícola por meio da implantação de reforma agrária compatível com as necessidades locais e da gestação de novas formas de estruturas produtivas;
  • Desafio territorial – considerando que a agricultura é potencialmente uma atividade capaz de integrar-se a outras atividades rurais, esse desafio consiste em buscar a viabilização de uma efetiva integração agrícola com o espaço rural, por meio da pluratividade e da multifuncionalidade desses espaços;
  • Desafio tecnológico – considerando que a agricultura é fortemente dependente de tecnologias para o aumento da produção e da produtividade, e que muitas das tecnologias, sobretudo aquelas intensivas em capital, são causadoras de impactos ao ambiente, urge que se desenvolvam novos processos produtivos onde as tecnologias sejam menos agressivas ambientalmente, mantendo uma adequada relação produção/produtividade.
Esses desafios são tanto maiores e mais complexos quanto maior o número de limitações impostas pelo ambiente e, para superá-los, é necessário um profundo conhecimento sobre o meio, tanto em seus aspectos físicos e biológicos quanto em seus aspectos humanos. 
  • É necessária uma nova (agri)cultura que concilie processos biológicos (base do crescimento de plantas e animais) e processos geoquímicos e físicos (base do funcionamento de solos que sustentam a produção agrícola) com os processos produtivos, que envolvem componentes sociais, políticos, econômicos e culturais. 
Essa abordagem deve se basear no conhecimento que se tem hoje do funcionamento dos ecossistemas terrestres: 
I) o equilíbrio da natureza é extremamente delicado (e instável) e o homem pode modificá-lo de maneira irreversível, pelo menos em termos de escala de vida humana;
II) a Terra não é um reservatório ilimitado de recursos;
III) no longo prazo, a sociedade jamais é indenizada pelos danos ambientais e pelos desperdícios de recursos naturais, nem em termos econômicos, nem em termos sociais; e
IV) o fictício bem-estar de alguns segmentos sociais se dá à custa da exploração real e atual de excluídos, que não usufruem vantagens econômicas e sociais mínimas, e pelo comprometimento das novas gerações, que tendem a se deparar com problemas sociais e econômicos cada vez mais complexos.

Agricultura e Sustentabilidade

A agricultura sustentável e seus limites técnicos e sociais:
  • Como tornar a agricultura brasileira mais sustentável, garantindo os ganhos de produtividade agrícola atuais? Esta parece constituir uma questão de peso, sobre a qual todos interessados no desenvolvimento devem se debruçar. 
Várias tentativas de resposta já foram ensaiadas nos últimos anos, constituindo um movimento que originalmente se chamou de “agricultura alternativa” (década de 1970) e que hoje se agrupa em torno das iniciativas de “agricultura ecológica”.
  • As preocupações com as conseqüências da agricultura industrial implantada com a Revolução Verde começaram a surgir no Brasil a partir de meados da década de 1970, tendo assumido uma expressão mais visível no início da década de 1990, onde diferentes iniciativas pretensamente mitigadoras de problemas socioambientais daquela agricultura começaram a apresentar alguns resultados. Neste período, a sensibilidade ecológica surge sob a forma de uma tomada de consciência sobre a destruição do capital genético do planeta e da alteração dos equilíbrios próprios aos ecossistemas existentes.
Desde seus primórdios, as iniciativas em prol de uma agricultura mais sustentável reservam um lugar importante à tecnologia, aos processos e métodos de produção. A grande mutação que engendrou o processo de modernização da agricultura em curso nas últimas quatro décadas desempenhou um papel na extensão da crítica feita à técnica e aos processos produtivos.
  • A agricultura sustentável (AS) é uma noção nova, freqüentemente associada, no debate social atual, à de desenvolvimento (rural) sustentável, tendo uma incidência em espaços geográficos e sociais mais ou menos restritos, apesar da difusão desta noção.
No entanto, mesmo que se tenha intensificado o debate em torno do tema, a AS até agora foi superficialmente definida. Dependendo da posição social do agente social que a define, têm-se compreensões ou entendimentos diferentes a respeito. As posições assumidas nesse debate têm se restringido, geralmente, ao uso normativo e ampliado da noção, ou seja, através de grandes contornos de definição. 
  • No geral, incorporam idéias ambientais (ecológicas, preservacionistas/conservacionistas do meio ambiente) e de sentimento social acerca da agricultura, o que implica um conjunto de elementos ou componentes sobre a sociedade e a produção agrícola que extrapola os limites do campo da agricultura. Essa amplitude da noção traz, às vezes, alguns problemas, na medida, por exemplo, que confunde os instrumentos técnico-científicos da AS com o processo ou as políticas de desenvolvimento.
Nesse sentido, é marcante o grau de abrangência das concepções, indo do técnico-produtivo à “construção de novas relações sociais entre os homens”, passando pela agricultura familiar e pelo desenvolvimento sustentável.
  • Do ponto de vista metodológico, ainda não se conseguiu operacionalizar a noção de AS. Esta compõe um sistema heterogêneo de intervenções, de variáveis, de elementos que precisam ser privilegiados a todo momento. Não se consegue, dentro de um sistema de produção, intervir em todas as variáveis. 
Deve-se ter bem claro, então, que, ao interferir numa variável, num elemento ou mesmo na linha de produção (do sistema de cultivo ou de criação), ou numa tecnologia qualquer dentro de um sistema, se está interferindo no seu conjunto, e isso é algo muito importante a ser considerado.
  • Mesmo que ainda não se saiba muito bem como interferir nos sistemas, pelo menos alguns agentes (individuais e coletivos) parecem demonstrar, do ponto de vista geral e discursivo, como se deve idealmente fazê-lo. 
Falta, contudo, um maior domínio teórico e prático sobre o funcionamento desses sistemas. A capacidade teórico-prática e a formação, ao longo dos anos, dos técnicos parecem ainda não ter sido adequadas e suficientes para atender a essas exigências. 
  • A estrutura de seu referencial teórico ainda não está montada; falta à AS propor seus próprios paradigmas. Uma grande lacuna, portanto, é observada nesse campo. A demora em responder a esses desafios teóricos e metodológicos pode consolidar a percepção de que esta proposição é incapaz de transformar seus princípios em ação.
É forçoso Forçoso é reconhecer que as propostas de agricultura sustentável ainda são minoritárias e incipientes em certos contextos sociais da produção agrícola brasileira, até mesmo marginalizada, mesmo se reconhecendo que em algumas regiões tem-se avançado consideravelmente na implementação de algumas políticas públicas (de extensão e assistência técnica, de pesquisa agrícola, de aporte de recursos financeiros em programas específicos para a produção agrícola sustentável, dentre outras). 
  • A massificação/generalização dessa proposta passa por várias questões que ainda não estão sendo trabalhadas em espaços onde não se tem o poder suficiente para intervir. Mas, por menores ou ínfimas que sejam as intervenções atuais, deve-se ter a compreensão de que elas fazem parte de um processo educativo e de uma ação coletiva concertada necessários à construção de um processo movimento social mais amplo.
As tecnologias defendidas/propostas pelo movimento de agricultura sustentável supõem uma certa ruptura com as técnicas ditas convencionais ou “modernas” de produção agrícola, de gestão e de acesso às matérias e recursos primários. Na maior parte do tempo, essas tecnologias valorizam os meios mais adaptados técnica, econômica e socialmente aos agricultores/produtores, situando-se numa gama de técnicas e práticas que vão desde as destinadas à subsistência até as tecnologias mais avançadas.
  • Neste contexto, pode-se considerar algumas grandes correntes de pensamento que se estruturam essencialmente a partir da concepção de uma tecnologia agrícola mais sustentável, recebendo denominações como agricultura ecológica, agroecologia, agricultura biodinâmica, orgânica, regenerativa, permacultura, entre outras. 
Essas correntes vão sustentar e subsidiar as críticas que tendem a redefinir os objetivos e as opções tecnológicas, assim como os sistemas de produção.
  • Convém destacar que na maioria das concepções a tecnologia não é vista como um simples conjunto de procedimentos próprios a uma ciência particular, mas como um conjunto de meios colocados à disposição dos indivíduos a fim de organizar e aplicar os conhecimentos visando objetivos específicos.
A abordagem energética da agricultura, por exemplo, é uma concepção que começa a ser desenvolvida a partir do aporte de conhecimentos científicos e da experimentação agrícola, podendo ajudar a estabelecer as bases científicas da agricultura sustentável. 
  • Ela pode ser utilizada como importante via alternativa, situada entre duas correntes polares no debate social atual: uma, que busca uma certa maquiagem ecológica da agricultura “moderna”, oriunda da Revolução Verde, e outra que visa difundir e implementar os princípios de funcionamento de uma agricultura tradicional, não modernizada. 
A primeira corrente não conseguiu ainda abandonar a visão “de produto” e a perspectiva setorial da agricultura, tendendo a beneficiar as cadeias produtivas e seus mercados em detrimento da perspectiva de conjunto da agricultura. 
  • A segunda abordagem tem dificuldades em promover uma maior generalização de suas proposições, visto que se encontra circunscrita a espaços restritos de experimentação, ainda sem um aporte científico capaz de consolidá-la, apesar de sua recente abertura ao campo científico.
A abordagem energética da agricultura surge com possibilidades de unificar, do ponto de vista técnico-científico, alguns princípios elementares da AS, podendo potencialmente ajudar a: 
  • I) quebrar algumas resistências ideológicas da intervenção técnica e social mais geral que se estabeleceram ao longo dos anos com as proposições ditas “alternativas”, assim como aumentar o diálogo e intercâmbio entre agentes sociais (individuais e coletivos) que atuam na mesma área, que trabalham com os mesmos objetos e, muitas vezes, enfrentam os mesmos problemas;
  • Diminuir os gargalos tecnológicos, ou seja, os limites ou problemas que ainda não são bem solucionados nas práticas de agricultura sustentável; e 
  • Fornecer bases para uma capacitação profissional para o enfrentamento da complexidade dos sistemas produtivos.
A origem e a trajetória política e social, nos últimos 20 anos, dos principais agentes que defendem a agricultura sustentável, nas suas distintas formas e ações mais contestadoras, forjaram um discurso e uma ação coerente com os princípios de crítica à sociedade industrial, influenciados também por segmentos progressistas da Igreja Católica e pelos partidos de esquerda, politicamente bastante atuantes nesse período.
  • Isso leva à hipótese de existência de um “vínculo genético”, que explicaria a forte marca ideológica observada até hoje no grande movimento por uma agricultura mais sustentável, sobretudo naquelas vertentes de cunho “ecológico”. Mas essa histórica e explícita vinculação com o campo político-ideológico trouxe problemas de relacionamento e de afirmação para algumas proposições sustentáveis, na medida em que a tentativa de sua universalização parece ter sido prejudicada, pois foi identificada com um ideário político-partidário ou com grupos políticos específicos. 
Até mesmo o entrosamento e a estreita relação a serem estabelecidos entre os agentes de uma AS foram, ao longo do tempo, afetados, na medida em que persistiram algumas diferenças de caráter político mais geral e, por conseguinte, de condução das principais ações e iniciativas no seio de diversos grupos. Do ponto de vista das tecnologias de base para uma agricultura sustentável, constata-se freqüentemente dois tipos de obstáculos. 
  • O primeiro diz respeito às tecnologias propriamente ditas, que, embora por vezes conhecida e testada com base científica, não são devidamente inseridas nos sistemas produtivos, seja por falta de difusão tecnológica apropriada, seja por desarticulação entre pesquisa e extensão rural com segmentos produtivos que poderiam se beneficiar dessas tecnologias. 
Outro obstáculo diz respeito à dificuldade, mais ou menos generalizada, de aprofundamento do conhecimento sobre os sistemas agrícolas ou da falta de clareza a respeito de suas dinâmicas.
  • Em relação à capacitação dos agentes de AS, esta ainda se mostra deficiente de maneira geral. Pela dificuldade de penetração nos espaços acadêmicos mais consolidados, a proposta fica se reciclando entre um número reduzido e permanente de técnicos reconhecidos por sua alta contribuição ao tema. 
A intensificação e a diversificação dessa capacitação dos agentes certamente deverão permitir uma intervenção mais qualificada na prática, servindo-se das sistematizações que as diferentes equipes deverão realizar, aportando, assim, elementos de conhecimento para atender aos desafios tecnológicos crescentes. 
  • Em virtude da pouca sistematização das experiências até agora, fica bastante prejudicada a aferição dos impactos das tecnologias e das práticas agrícolas sustentáveis preconizadas, a avaliação/constatação empírica das poucas experiências não permitindo uma verificação fidedigna.
Agricultura sustentável como movimento social: 
Construindo cenários
  • Além de seu potencial unificador e técnico-científico, a mencionada abordagem energética da agricultura pode se mostrar capaz de aglutinar forças para propor e implementar novas políticas públicas, a fim de promover a mudança do padrão tecnológico altamente impactante e desagregador da agricultura atual. 
Essas políticas, alicerçadas em uma base tecnológica consistente e experimentada, poderão atender aos desafios antes mencionados, trazendo maior inclusão social, garantindo os patamares produtivos já conquistados (e em alguns casos até mesmo potencializando-os), promovendo maior proteção ambiental e melhorando a distribuição da renda gerada na agricultura.
  • Mas, para isso, não é suficiente um padrão tecnológico definido, fazendo falta a agricultura sustentável se constituir enquanto um movimento social stricto sensu, ou seja, numa ação social organizada contra a hegemonia do modo de desenvolvimento agrícola atual. 
Por enquanto, a agricultura sustentável é a expressão de iniciativas de grupos ou agentes sociais mais ou menos isolados, ainda pouco orgânicos, com resultados técnicos e sociais em diferentes amplitudes, agentes estes que poderão vir a integrar um movimento social, mas que, atualmente, não constituem e não representam um movimento social.
  • No atual contexto sociopolítico brasileiro, o movimento pela agricultura sustentável parece indicar três vias possíveis de concretização, três etapas de desenvolvimento identificáveis no plano analítico, a saber: uma, concebida como sendo a institucionalização da marginalização da agricultura alternativa ou ecológica; outra, uma segunda que corresponde a uma certa "ecologização" da agricultura moderna ou convencional; e uma última, onde em que a agricultura ecológica poderá ser apreendida enquanto uma verdadeira alternativa técnico-científica global.
No curto prazo, as diferentes proposições de agricultura sustentável podem ser bem apreendidas por um certo tipo de agricultores, de pequeno porte e de cunho familiar, enfrentando “dificuldades", situados em regiões onde faltam recursos materiais, físicos e financeiros, e produzindo, antes de tudo, para assegurar sua subsistência. A médio e longo prazos, o segundo cenário aparece de forma muito plausível. 
  • De fato, em se tratando de uma agricultura convencional de maneira específica e de sua "ecologização", certos fatos já se manifestam de forma visível através de práticas mais voltadas para a conservação ambiental, como, por exemplo, o uso da compostagem, da adubação verde, enfim, do manejo ecológico dos solos, do recurso à luta biológica integrada contra pragas e doenças, que implica no abandono de produtos e práticas consideradas nocivas para as pessoas e para o ambiente.
No que se refere ao cenário de apreensão da agricultura sustentável ou ecológica como alternativa técnico-produtiva global, é necessário escapar da lógica de ação puramente contestadora, bem como do seu enclausuramento no interior de espaços morais e socioculturais específicos. Além disso, é necessário que grupos e agentes de agricultura ecológica sejam capazes de mostrar capacidade renovada para abrir novas vias de afirmação no domínio das maneiras de produzir e de viver. 
  • Essa proposta, enquanto projeto político, passa, necessariamente, por sua afirmação como “nova ciência”, a qual, desde já, se propõe. É, portanto, também no espaço social configurado pelo campo científico que essas proposições devem se afirmar. 
Para isso, devem disputar “objetos científicos”, buscando legitimidade científica capaz de subsidiar/ sustentar a luta no campo político e social mais amplo, incorporando (e fazendo incorporar) conceitos, valores e técnicas capazes de serem compartilhados por determinada comunidade científica e utilizados para definir problemas e soluções. 
  • Não é, pois, simplesmente negando a “velha ciência” e recusando-se ao jogo político no campo científico que as diferentes formas de agricultura sustentável em pauta chegarão a se afirmar ou a se generalizar. Em qualquer dos dois últimos cenários apresentados a agricultura sustentável deverá garantir que, no mínimo: 
I) Os frutos (produtos e renda) sejam repartidos de forma mais igualitária entre a população;
II) Sejam mantidos ou potencializados os ganhos produtivos obtidos nos últimos anos, o que tornou a agricultura peça-chave do desenvolvimento do País;
III) Sejam ampliados os mercados agrícolas, especialmente aqueles da demanda interna; e iv) se vise a uma melhor proteção do meio ambiente.

A chef e pesquisadora Ana Luiza Trajano apresenta na nova carta, pratos que representam a culinária brasileira como um todo e mantém propósito de valorizar a sustentabilidade e a agricultura familiar