sexta-feira, 8 de julho de 2016

Desenvolvimento Sustentável na Costa Brasileira

Desenvolvimento Sustentável na Costa Brasileira

Ícaro Cunha
Máster en Gestão de Negócios
Coordenador de Pós Graduação Universidade Católica de Santos
  • Neste trabalho, são apresentados aspectos relevantes para o entendimento dos desafios para a construção da sustentabilidade na costa brasileira. A zona costeira é palco de uma ação específica da política ambiental brasileira, o Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro. 
Em sua origem, esta iniciativa governamental se liga às redefinições sobre o mar territorial e as zonas econômicas utilizáveis pelos paí- ses no aproveitamento dos recursos do mar. Na década de 80, este programa foi amadurecido pelo governo brasileiro no interior da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, e desde então, com etapas de maior ou menor dinamismo, acontece sua evolução.
  • Além de situar as características desse processo, procuramos relacioná-lo à evolução geral da política ambiental brasileira, e suas respostas às crises ambientais ligadas ao desenvolvimento do país na segunda metade do século XX. 
Os conflitos ambientais e o envolvimento dos grupos ambientalistas são dimensões igualmente estratégicas para compreender os avanços conquistados e os pontos de resistência, num contexto em que qualidade ambiental e inclusão social são metas fundamentais, e a nosso ver inseparáveis. 
  • A Zona Costeira do Brasil é uma unidade territorial que se estende em sua porção terrestre por cerca de 8.500 quilômetros, abrangendo 17 estados e mais de quatrocentos municípios. Inclui também uma faixa marítima formada pelo mar territorial, com largura de 12 milhas náuticas a partir da linha de costa. De forma geral, as zonas costeiras são regiões de transição ecológica, com importante papel de ligação e trocas genéticas entre os ecossistemas terrestres e marítimos. 
No Brasil, os espaços costeiros cumprem este papel desde o extremo norte equatorial, onde interagem com a dinâmica de florestas e águas amazônicas, até o sul temperado do país, passando por longa extensão em que estão presentes os remanescentes do bioma de mata atlântica. 
  • A singular importância destes ecossistemas soma-se à extraordinária biodiversidade da faixa marinha, a abrigar 10% das 12 mil espécies de peixes descritas até hoje, servindo ainda de refúgio e local de reprodução para cinco das sete tartarugas marinhas do planeta. Como país litorâneo de formação colonial, a ocupação territorial do Brasil ocorreu de forma geral da Zona Costeira para o interior, o que explica um significativo adensamento populacional no litoral. 
Atualmente, cerca de 1/5 dos 170 milhões de brasileiros vivem à beira mar, com a Zona Costeira apresentando uma densidade populacional cinco vezes maior que a média nacional. Metade da população do país vive a menos de 200 km da orla marítima, apresentando-se extremamente concentrada no espaço: nesta faixa estão as dez maiores cidades do país, que somam 25 milhões de habitantes. 
  • Cerca de 90% da população costeira vive em cidades, onde 80% dos habitantes não dispõem de serviços de esgotos e mais de 40% dos domicílios não possuem sequer fossas sépticas. Várias destas cidades tão precárias do ponto de vista da poluição doméstica desenvolveram-se historicamente em torno de portos e pólos industriais, cujo potencial de impacto ambiental não é menos significativo. 
Dessa forma, os conflitos pelos usos do território costeiro, terrestre ou aquático, influenciam fortemente as dinâmicas ambientais de ecossistemas biodiversos que figuram entre aqueles mais pressionados do planeta. 
  • Sendo os mais antigos espaços de urbanização, estas regiões guardam também casarões, igrejas, ruínas de fazendas de escravos, todo um conjunto de monumentos arquitetônicos que como diz a estudiosa Judith Cortezão, documentam o namoro do homem com a natureza ao longo da história do Brasil. Todo este patrimônio natural e construído está submetido às pressões associadas às diferentes manifestações da crise ambiental brasileira.
Desenvolvimento e Meio Ambiente no Brasil:
  • A região metropolitana de São Paulo, principal pólo de desenvolvimento do Brasil, convive com racionamento de água para sua população, em função da incapacidade de administrar adequadamente a proteção de seus mananciais de abastecimento. 
Nesta mesma metrópole, nos períodos de inverno quando as inversões térmicas reduzem o potencial de dispersão atmosférica, o ar torna-se insalubre pela concentração de poluição, ocasionando episódios de agravamento das doenças respiratórias que são fatais para grupos consideráveis de crianças e idosos, especialmente nas faixas de baixa renda que habitam periferias urbanas. 
  • Uma área do tamanho da França foi desmatada até hoje na Amazônia, ao longo da história do Brasil. A projeção do atual ritmo de desmatamento feita pelo Ministério do Meio Ambiente brasileiro estima que em 30 anos duplicaremos o tamanho desta área de floresta eliminada em 500 anos. Exemplos como estes infelizmente repetem-se ao longo do território brasileiro, compondo uma crise ambiental relacionada especialmente ao estilo de desenvolvimento do país na segunda metade do século XX e a suas conseqüências sobre os espaços regionais. 
Obviamente, as transformações dos espaços do Brasil por ações humanas são muito mais antigas, remontando às populações indígenas. Basta dizer que os estudos etnobotânicos indicam que ao menos 11% da floresta amazônica que hoje lutamos para conservar são conjuntos resultantes de manejo humano, transformações promovidas em longos períodos históricos pelas sociedades de caçadores e coletores. 
  • Estes povos somavam na época do descobrimento uma população bem maior que a de Portugal e suas colônias, que seria dizimada pela gripe, pelo escravismo e pela tomada de suas terras pela empresa colonial que inauguraria a transformação ambiental mais constante da história do país : a simplificação dos ecossistemas pela implantação da monocultura agrícola. 
Cada um dos ciclos de extração e cultivo de produtos que compõem a nossa história econômica, como o pau brasil, o algodão, a cana de açúcar, a mineração, o café, deu lugar a consideráveis impactos ambientais. Ainda na primeira metade do século XIX, José Bonifácio de Andrada e Silva escreveria sobre a transformação de regiões do Brasil em áreas inférteis como os desertos da Líbia. 
  • Esta tradição de uso imprudente do território, do ponto de vista ecológico, seria potencializada aos extremos nos ciclos desenvolvimentistas do pós guerra, quando os processos de produção típicos do industrialismo dos países desenvolvidos passaram a ser transferidos para o interior do país. 
Vamos destacar aqui algumas características centrais, do ponto de vista ambiental, deste período histórico. Os polos industriais cuja implantação foi promovida tiveram como característica comum o fato de concentrarem no espaço aglomerações de processos fortemente poluidores. 
  • Tais concentrações de cargas poluidoras se localizaram muitas vezes em locais ecologicamente frágeis e vulneráveis. As tecnologias de produção eram importadas como pacotes fechados, estando os técnicos brasileiros despreparados para um controle mais profundo. Quando a preocupação com a poluição aflorou como algo importante, este despreparo significava incapacidade para estabelecer o seu controle ambiental. 
A agricultura pós anos 60 impôs novos padrões de mecanização e uso de produtos químicos, de forma indiscriminada. A contaminação química de alimentos e das águas e a enorme perda de solo fértil foram as conseqüências mais notáveis, ao lado da maciça substituição do trabalho humano pelas máquinas, com forte impulso para a migração das populações do campo para as cidades. 
  • Na era do regime militar, dos anos 60 aos 80s, os projetos de desenvolvimento tinham forte componente geopolítico. A preocupação com a soberania nacional sobre a Amazônia, num contexto em que as questões ecológicas eram desprezadas, dava lugar a uma política de abertura de novas fronteiras agrícolas. 
Somavam-se projetos como o aproveitamento de recursos minerais para desenhar um conjunto de grandes intervenções sobre os espaços amazônicos perverso do ponto de vista de suas repercussões ambientais e sociais, pois a um só tempo geravam-se severos danos sobre a natureza e se desorganizavam modos de vida das populações tradicionais de caboclos, seringueiros, pescadores e mesmo indígenas. 
  • As maiores cidades brasileiras conheceram uma era de inchamento exagerado, tornaram-se grandes aglomerações para onde dirigem-se constantemente numerosos grupos de migrantes pobres atraídos pela oportunidade ou pela miragem do emprego. 
São cidades do automóvel e da especulação imobiliária, onde a segregação espacial dos mais pobres naquilo que chamamos periferias urbanas relega grandes contingentes a habitarem em espaços ilegais, marcados pela insalubridade ambiental. O risco ambiental está disseminado pelo território brasileiro. 
  • Hoje, nos cursos superiores dedicados ao estudo do meio ambiente, as análises de Ulrich Beck sobre a sociedade do risco são estudadas. Este estudioso alemão fala de uma nova realidade em que o risco substitui a luta por resolver as necessidades básicas de sobrevivência das pessoas como preocupação central. Aqui está um aspecto que diferencia a realidade brasileira daquelas pensadas por este autor. 
No Brasil, a disseminação do risco ambiental ocorre numa sociedade em que não está garantido o atendimento a estas necessidades básicas para vastos contingentes. Crise ambiental e exclusão social são historicamente duas faces de uma mesma moeda, de um mesmo estilo de desenvolvimento e consumo. 
  • O Estado brasileiro, alternando fases populistas ou autoritárias, desenvolveu seu papel de parceiro e criador de infra-estrutura para este conjunto de processos de transformação produtiva do território. Toda uma rede de integração, vias de transporte e de comunicação, complexos de energia, ligaram as diferentes regiões entre si e aos circuitos econômicos internacionais. 
Encurtaram-se as distâncias entre os mais isolados recantos e seus habitantes tão próximos da herança da cultura indígena, para os modos de viver contemporâneos dos modernos centros urbanos e industriais. Um grande geógrafo brasileiro, 
  • Milton Santos, propôs recentemente a caracterização de nosso território como um meio técnico científico informacional, em que os ritmos da economia e da vida cotidiana atendem à aceleração dos fluxos econômicos num contexto de crescente integração da produção e do comércio em escala mundial. 
No território brasileiro, ainda encontram-se as regiões em que os tempos da vida dos grupos humanos acompanham o tempo da natureza. Mas cada vez mais a utilização do território e seus recursos, e as alternativas de sobrevivência que se abrem às populações, devem dar conta dos desafios de conflitos ambientais mais complexos, que colocam em contato diferentes culturas. 
  • A economia predatória e a economia da sustentabilidade protagonizam disputas entre projetos que articulam interesses locais a interesses de outras sociedades, de outras partes do mundo. A jovem democracia brasileira, dessa forma, tem ampliados os seus desafios para a construção da cidadania numa sociedade tão desigual. Os conflitos ambientais assumem um papel central na equação do desenvolvimento do país.
Diferentes projetos Econômicos para a Zona de Costa:
  • A zona costeira brasileira é nos anos recentes uma nova fronteira econômica e de ocupação do território. As grandes cidades antigas, e as que crescem em torno de portos e pólos industriais, recebem constantemente fluxos migratórios, compostos por populações que buscam oportunidades de sobrevivência. 
Nestas mesmas cidades, e nos espaços entre elas, fluxos sazonais de turistas trazem, especialmente nas épocas de verão, um grande aumento da população, em geral acomodada em residências de veraneio que vão tomando espaços antes isolados e pouco habitados, e que agora vêem surgir novas manchas urbanas. 
  • Em algumas regiões do país, as grandes cidades do litoral tiveram origem na colonização européia, e se expandiram com o tempo, tornando-se geralmente as capitais dos estados. Em outras regiões, o povoamento se interiorizou, e os pólos urbanos dinâmicos se desenvolveram fora da zona de costa. Mas mesmo onde metrópoles se formaram à beira mar, o conjunto da costa guardou grandes espaços pouco habitados, até recentemente. 
Sem movimento econômico de maior porte que justificasse investimentos em estradas, estes grandes espaços costeiros longe das grandes cidades muitas vezes abrigavam populações esparsas de pescadores artesanais e pequenos agricultores, que produziam para sua subsistência com uso de técnicas simples e do conhecimento empírico da natureza. 
  • Economias que faziam parte significativa de suas trocas sem uso da moeda geral, dentro das quais os terrenos à beira mar eram posses transmitidas de pai para filho e não propriedades registradas legalmente, se desenvolviam em vilas de frente para o mar, via de acesso que os ligava a outros lugares. 
Estudos como os do Professor Antonio Carlos Robert Morais mostram como os grandes projetos desenvolvimentistas de governo, ao longo das últimas décadas, originaram um novo movimento de ocupação dos espaços litorâneos. Grandes pó-los industriais, usinas de eletricidade, terminais de petróleo, ampliação de estruturas portuárias. 
  • Novas redes de estradas rasgaram as distâncias entre as grandes cidades e os recantos do litoral, para facilitar o acesso das cargas ou para viabilizar a vinda dos turistas. Em muitos dos espaços da costa, o atrativo turístico oferecido a um número cada vez maior dos moradores das grandes cidades se limita ao binômio sol e praia, que conforme o clima regional fica restrito a uns poucos meses do ano. 
Promoveu-se em verdade a abertura dos espaços litorâneos ao veranismo, apoiado basicamente na venda da segunda residência, uma atividade com forte componente especulativo em relação aos valores dos terrenos, necessitando para tanto desalojar os moradores tradicionais. 
  • Sabe-se que os diferentes ecossistemas costeiros guardam papéis diferenciados em termos de biodiversidade, sendo os mais importantes as lagoas costeiras, os estuários e os manguezais. 
Na escolha de sítios para localização de empreendimentos, estes aspectos de vulnerabilidade ecológica deveriam nortear as decisões, considerando-se também as características dos ecossistemas próximos no espaço marinho e para o interior do continente, olhando-se especialmente, conforme a região, as fragilidades de biomas da importância da floresta amazônica e da mata atlântica. 
  • Esta lógica foi ignorada ao longo deste movimento de re-ocupação da costa nas décadas recentes, obedecendo as decisões a vantagens econômicas definidas dentro de uma perspectiva alheia a considerações ecológicas. 
Dessa forma, os impactos ambientais e sociais foram maximizados. Em 2002, uma avaliação das prioridades para conservação da biodiversidade nas zonas costeira e marinha desenvolvida pelo Ministério do Meio Ambiente identificava as principais ameaças a um litoral que como o restante do território brasileiro é caracterizado por enorme diversidade e alto nível de endemismos das espécies. 
  • O avanço da urbanização, com formas de ocupação e uso do solo irregulares, sem saneamento básico, é a principal ameaça aos ecossistemas costeiros. A atividade turística desordenada é uma outra causa de destruição de habitats naturais litorâneos. 
Além da poluição de origem doméstica, também a originada de atividades industriais, portuárias, agrícolas e de mineração são mencionadas como focos de contaminação. No meio aquático, a atividade pesqueira é responsável por impactos diversos, gerados pela sobrepesca, pelo desrespeito a períodos de interdição em função da reprodução de espécies, e pela pesca de arrasto. A poluição por óleo e o aporte de sedimentos trazem, também, impactos importantes.
  • Regra geral é o desalojo das populações tradicionais, que não tendo familiaridade com o mundo do dinheiro venderam por valor nenhum seus terrenos junto ao mar ou por vezes foram submetidas à expulsão violenta. 
Os novos empreendimentos imobiliários trouxeram a moderna sociedade de consumo para uma fulgurante invasão a cada temporada de verão, sendo comum o fenômeno da perda de identidade cultural dos mais jovens das populações locais, que não sentem motivação de continuar com a vida de pescadores de seus pais. 
  • Como as vagas de trabalho da economia de verão são sazonais, estas pessoas se somam aos contingentes de migrantes pobres que vêm trabalhar na construção dos empreendimentos luxuosos, desenvolvendo bolsões de favelas que ocupam os terrenos que não estão no mercado, muitas vezes terrenos onde é ilegal construir por estarem nas áreas de recarga dos mananciais ou em outro tipo de espaço de preservação. 
O controle ambiental deste processo devastador historicamente tem sido pouco eficaz. As agências ambientais governamentais ganharam corpo em alguns estados brasileiros como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul no fim dos anos 70, e bem mais recentemente em outros. 
  • Suas ações estiveram concentradas nos locais mais críticos, em geral as metrópoles mais poluídas pela indústria e pelo tráfego de veículos. 
Os lugares de praia, com menor população fixa e menos indústrias, foram sendo deixados aos cuidados de equipes pequenas, com escassos meios de trabalho, ineficazes enfim para exigir o cumprimento de regulamentos em relação a uma verdadeira invasão feita de múltiplos focos distribuídos por imenso território. 
  • A articulação política entre interesses imobiliários e os esquemas de poder local tem peso importante para reduzir ainda mais o alcance do trabalho de fiscalização ambiental, numa sociedade em que tradicionalmente os governantes dão “aos amigos tudo, e aos inimigos, a lei”.
A Política Nacional de Gerenciamento Costeiro:
  • O programa nacional de Gerenciamento Costeiro foi desencadeado em meados da década de 80, depois de alguns anos de maturação técnica em relação às metodologias de trabalho, no interior da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar do governo brasileiro. 
É uma ação coordenada pelo governo federal e executada por cada estado costeiro, a quem cabe desenvolver o zoneamento ecológico e econômico de seu litoral, passando depois à construção de um processo de gestão integrada. 
  • É um programa inovador por incorporar processos participativos, desde as etapas de discussão dos zoneamentos, quando se organizam colegiados em que são chamados representantes das populações locais, governos municipais, diferentes setores econômicos.O principal papel educativo do Gerenciamento Costeiro está em demonstrar que a costa precisa de um plano de desenvolvimento sustentável, atendendo à dinâmica econômica e ao respeito às características dos ambientes regionais. 
Até então, a idéia de senso comum percebia as áreas de florestas protegidas por Unidades de Conservação como o meio ambiente a ser preservado, e o resto do território litorâneo um todo indistinto pouco utilizado, para onde seria positivo trazer qualquer forma de aproveitamento econômico. 
  • O processo de discussão dos zoneamentos da costa vem gerando capacitação de atores regionais para o entendimento de que a costa é um conjunto de ambientes delicados e vulneráveis, não apenas nas florestas de encostas, mas nas vegetações de restingas, nos costões rochosos, nos encontros de águas doces e salgadas, nos diferentes espaços marinhos. 
Lentamente, difunde-se para novos setores das sociedades regionais a compreensão de que é preciso ordenar a distribuição das atividades econômicas e urbanas, e de que uma cidade na costa talvez deva ser diferente dos exemplos de cidades grandes que conhecemos. 
  • Um exemplo importante do avanço do Gerenciamento Costeiro vem do estado do Rio Grande do Sul. Lá, a região do litoral norte foi a primeira a ser objeto do trabalho de zoneamento ecológico e econômico. 
Trata-se de um conjunto de espaços excepcionalmente interessantes e importantes do ponto de vista da biodiversidade, em que se destaca um notável cordão de lagoas costeiras, várias de grande porte, interligadas entre si, que ocupam parte da planície costeira entre a faixa de dunas e praias onde é fortíssima a pressão imobiliária, e a zona em que se iniciam as encostas da serra cobertas por remanescentes de mata atlântica. 
  • Desenvolvida a proposta de zoneamento costeiro, esta foi debatida em assembleias, até sua aprovação. Legitimado desta forma, o plano regional passou a orientar o licenciamento praticado pela agência estadual de proteção ambiental, a quem coubera a condução do processo de planejamento. 
Hoje, inicia-se uma fase em que os municípios desta região vão desenvolver seus planos diretores, e a agência estadual ocupa-se de fornecer diretrizes e apoiar a capacitação de equipes locais, para que os planos municipais estejam adequados ao macrozoneamento. 
  • Uma outra tarefa que começa a ser enfrentada é o disciplinamento dos usos das margens de lagoas, que em algumas cidades já sofrem pressões consideráveis. 
Embora se trate sempre de um jogo de conflitos de interesses, o que ressalta da experiência dos gaúchos –como são chamados os brasileiros do Rio Grande do Sul– é o fato de um plano básico de desenvolvimento sustentável estar no centro dos processos de gestão ambiental, ordenando o conjunto de intervenções das diferentes burocracias que têm responsabilidades em questões de parques, controle de poluição, controle de desmatamentos e gestão de recursos hídricos. 
  • Essa é uma novidade da maior importância na realidade brasileira. Em outros estados, como São Paulo, o Gerenciamento Costeiro caminha mais lentamente, em função da resistência dos interesses econômicos e políticos regionais, que equivocadamente vêem a idéia de ordenamento do território como uma perda de alternativas de desenvolvimento.

Desenvolvimento Sustentável na Costa Brasileira 

A Agenda Ambiental Portuária:
  • Mais recentemente, no final da década de 90, o Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro gerou a agenda ambiental portuária, uma frente de trabalho voltada a um controle ambiental global sobre os portos brasileiros. 
Muitos se surpreendem com o fato de uma das mais antigas atividades econômicas, a portuária, ter se desenvolvido até aqui sem ser objeto de controles ambientais abrangentes. 
  • Finalmente o grande potencial de alteração ambiental dos portos na costa foi focado, no bojo das mudanças gerenciais promovidas pelo programa de modernização que privatizou as operações portuárias e mudou as suas relações de trabalho, perseguindo os objetivos de redução de custos e dos tempos de carga e descarga de mercadorias, num contexto de crescente integração de economias em escala mundial que exigia rapidez nos fluxos de cargas. 
Hoje os portos brasileiros começam a construir sistemas de gestão ambiental, iniciando sua capacitação para equacionar os impactos das dragagens, do lixo de navios, das mudanças de linha de costa e desmatamentos associados à expansão das infra-estruturas, ou do controle de espécies exóticas que chegam dentro das águas de lastro. 
  • Os acidentes ambientais são um foco de destaque, já há algum tempo, sendo o desenvolvimento de planos integrados de contingência uma das primeiras tarefas cobradas na implantação desta agenda ambiental portuária.
Embriões de uma Economia Sustentável:
  • As iniciativas governamentais de gestão ambiental da costa propõem as bases para uma economia sustentável, mas até aqui não são suficientes para promover uma dinamização de novos negócios orientados nessa direção. 
Além de maior entrosamento entre as várias agências públicas, falta aos diferentes níveis de governo a decisão de fazer da sustentabilidade uma política de desenvolvimento, indo além do repertório de controles ambientais. 
  • De qualquer forma, multiplicam-se na costa brasileira experiências que vão abrindo caminhos importantes para novas economias mais sustentáveis. O turismo vem sendo objeto nos últimos anos de novas atenções por parte do governo federal e de alguns governos estaduais. 
Especialmente no nordeste brasileiro, linhas de financiamento procuram criar condições para aproveitar o potencial de crescimento do mercado internacional, desenvolvendo estruturas receptivas numa região onde a variação de clima é mais amena. 
  • Embora acompanhado da abertura de novas estradas, trazendo preocupação pela possível indução de novos focos de ocupação urbana, este movimento tem um sentido geral positivo, pois o turismo aparece como um ramo com grande afinidade em relação à meta de atribuir valor econômico a bens naturais e culturais preservados. 
Registram-se experiências de ecoturismo, que se multiplicam pela zona costeira, muitas vezes promovidas por grupos não governamentais em parceria com governos locais. Uma das mais importantes dessas iniciativas ocorre na região do lagamar ou sistema estuarino-lagunar na região limítrofe entre São Paulo e Paraná, uma das maiores porções contínuas de mata atlântica brasileira preservada. 
  • Lá, a Fundação SOS Mata Atlântica, uma das mais importantes Organizações Não Governamentais brasileiras, desenvolveu um pólo modelo de ecoturismo, com atividades de capacitação dos moradores da região, desenvolvimento de regulamentos e infra-estrutura de apoio à visitação, bem como material promocional. Foi dado apoio também a cultivo de ostras e outras espécies comercializáveis, e ao artesanato. 
Esta mesma organização não governamental agora vem participando do desenvolvimento de uma certificação nacional em ecoturismo, que deverá ser uma importante ferramenta para disseminar um padrão adequado de serviços receptivos de turismo ecológico. 
  • Como esta experiência, muitas outras se multiplicaram ao longo da costa brasileira, em geral na forma de parcerias entre pessoal de grupos ambientalistas regionais e os governos locais, por vezes com apoio de universidades. 
Sem dúvida este é um grande potencial econômico na costa brasileira, cuja descoberta vem se dando quando os lugares precisam enfrentar as dificuldades econômicas geradas pela sazonalidade do turismo de sol e praia, e descobrem as vantagens de contarem com grandes áreas de floresta protegida, o que hoje se torna um atrativo para este outro tipo de turismo. 
  • Falta aprender a transformar estas potencialidades em verdadeiros produtos turísticos, com regras definidas, pessoal treinado, e capacidade para um bom atendimento aos visitantes. Outra linha de trabalho em que projetos localizados tornaram-se exemplos que começam a se multiplicar é a aquicultura. 
A perda do rendimento da pesca, provocada muitas vezes pela poluição e pelos impactos da pesca predatória, passou a ser enfrentada em alguns lugares com a capacitação dos produtores para o cultivo. Fazendas de mexilhões, tanques redes para peixes, tanques de cultivo de camarões, começaram há alguns anos a ser implantados em vários pontos da costa. 
  • Em Santa Catarina, um dos estados mais ao sul, há praias que são hoje verdadeiras fazendas marinhas. No Nordeste, a criação de camarões tornou-se um poderoso negócio de exportação, gerando mesmo efeitos ambientais preocupantes em áreas de manguezal, tamanho o apelo econômico que a atividade provocou. 
Ao lado das experiências que vão sendo acumuladas com novas práticas econômicas que, se não se enquadram plenamente num perfil sustentável, sem dúvida despertam a sociedade para novas possibilidades de aproveitamento dos recursos ambientais das regiões, muito além do repertório da economia predatória, é preciso valorizar os próprios investimentos dos setores produtivos na reversão de situações de degradação ambiental. 
  • Um exemplo de escala nacional e com forte presença na costa brasileira é a Petrobrás, empresa brasileira de petróleo, que vem fazendo nos últimos três anos um investimento de mais de um bilhão de dólares em seu programa de excelência em gestão ambiental. 
A manutenção preventiva de suas instalações e os meios para atendimento a emergências, em que se destacam os derramamentos de óleo no mar, estão no centro desta política. Na medida em que vai implantando esta nova política, a empresa é obrigada a um novo tipo de relacionamento com as comunidades locais nas áreas em que estão seus terminais portuários, desenvolvendo uma interação mais cooperativa que gera apoios a políticas locais de educação ambiental, ecoturismo, projetos de preservação. 
  • Um modelo que inspira estas parcerias é o já tradicional Projeto dedicado às Tartarugas Marinhas, o TAMAR, desenvolvido em parceria com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis. Este projeto tem sedes em diferentes pontos da costa brasileira, com ótimos resultados vinculados ao desenvolvimento de educação ambiental junto aos grupos de pescadores. 
O saneamento básico na região litorânea ainda não foi descoberto como alternativa estratégica para alavancar o desenvolvimento, gerando empregos e aumentando a atratividade turística dos lugares através de sua limpeza. 
  • As políticas locais ainda não conseguiram, de forma geral, superar os obstáculos do modelo centralizado de financiamento do saneamento implantado na fase do regime militar. 
Mais recentemente, a discussão de modelos para a privatização destes serviços foi a razão para a inércia neste campo. Mas sem dúvida o país deverá num futuro breve dinamizar o saneamento, combinando ações de governo e negócios privados. O peso da poluição por esgotos domésticos na má qualidade das praias será então transformado numa oportunidade para combinar oportunidades de trabalho com a melhoria do ambiente.

Conflito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável:
Na Costa Brasileira:
  • As informações e análises aqui trazidas buscaram apresentar os aspectos principais da realidade da costa brasileira em relação à construção da sustentabilidade. Gostaríamos de poder dizer que a política ambiental brasileira caminha de forma organizada e gradativa galgando os degraus do desenvolvimento sustentável, através de programas de ação bem coordenados e coerentes nas diferentes esferas de governo, articulando ainda os esforços dos diferentes setores da sociedade. 
Em troca, somos forçados a constatar que há ações de governo que propõem as bases para uma política de desenvolvimento sustentável, destacando-se nesse sentido o Programa de Gerenciamento Costeiro. Contudo, tais ações ainda não conseguem, na maioria dos estados costeiros, conferir um novo padrão global para as diferentes iniciativas de gestão ambiental e para os projetos de desenvolvimento do governo. 
  • Diferentes atores da sociedade, por convicção ou por imposição dos regulamentos e das preferências dos consumidores, arriscam novas posturas e novas propostas, conseguindo muitas vezes construir experiências positivas que se tornam referências. Já fica difícil impor políticas de fatos consumados na ocupação dos territórios costeiros. 
Em muitas localidades os ambientalistas, se não têm o poder de reordenar o processo de desenvolvimento, já conquistaram repercussão suficiente para dificultar enormemente os projetos econômicos, especialmente imobiliários, que tenham sido concebidos sem cuidado com os limites ambientais. 
  • Vivemos no Brasil e em sua costa a eclosão do conflito ambiental, quando diferentes grupos humanos que fazem diferentes usos dos recursos ambientais entram em discordância em relação ao aproveitamento dos recursos comuns. 
A manifestação consciente da vontade dos brasileiros é crescentemente a favor de um novo conceito de progresso, harmônico em relação ao meio ambiente. Essa vontade ainda não encontrou os caminhos econômicos que a realizem amplamente, e faltam muitas vezes a criatividade, a ousadia e os capitais para que surjam os investimentos nessa nova direção. 
  • Vivemos por outro lado uma época em que países como o Brasil se vêem cercados de pressões econômicas que reduzem a margem para projetos de origem local, que fujam à imitação dos modelos prontos de desenvolvimento. Acreditamos que a continuidade da vivência democrática permitirá que a construção de exemplos positivos, inovações econômicas e institucionais, parcerias cooperativas entre diferentes atores, e a sua difusão, abram estes caminhos. 
A proliferação de grupos favoráveis à sustentabilidade, de atuação local ou em rede nacional –como a Agência Brasileira de Gerenciamento Costeiro– pode ser uma fonte estratégica de novas energias a impulsionar este processo. Historicamente, o conflito ambiental no Brasil foi uma reação da sociedade civil a um padrão de desenvolvimento predatório em que o Estado autoritário assumia o papel de impor à população os grandes projetos de impacto. 
  • Com as novas regras ambientais, o conflito passou a ser vivido no seio da sociedade, desafiada a descobrir novas formas de fazer negócios e ganhar a vida. A negociação ambiental torna-se uma variável estratégica para a dinamização do desenvolvimento, desafiando os brasileiros a reconhecermos nossa grande diversidade social e cultural, caminhando do confronto para a cooperação. 
Inúmeros exemplos de ações bem sucedidas em que empresas, grupos não governamentais e agências de governo colaboram para descobrir novos potenciais de soluções parecem indicar um caminho para utilizarmos com sabedoria nossa grande diversidade ecológica.
  • Nesse esforço, é bem vindo todo aprendizado com as experiências desenvolvidas em outras realidades, por outras sociedades. O intercâmbio de visões e experiências não apenas enriquece o repertório de alternativas de gestão; pode ainda abrir alternativas de cooperação na construção de novas possibilidades para um desenvolvimento sustentável.
Bibliográfica:

BANCO MUNDIAL (1998): Brasil: gestão dos problemas da poluição. Relatório de política.
BECK, U. (1998): La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós.
BEZERRA, M.C.L.; FERNANDES, R.C. [coord.] (2000): Redução das desigualdades sociais. Subsídios à elaboração da Agenda 21 brasileira. Brasilia: Ministério do Meio Ambiente.
BURSZTYN, M. (1994): “Gestão ambiental e crise do estado no Brasil”, en Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal: Treinamento operacional das equipes de gerenciamento costeiro dos estados das regiões norte/nordeste e sul/sudeste. (Coletânea de textos). Brasilia.
CIRM (1998): Agenda ambiental portuária. Brasilia: Comissão Interministerial para os Recursos do Mar.
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (1988): Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
CUNHA, I. (2002): “Conflitos ambientais das atividades portuárias e política de gerenciamento costeiro”, en L. Junqueira: Desafios da modernização portuária. São Paulo: Aduaneiras.
DEAN, W. (1996): A ferro e fogo. A história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Cia. das Letras.
DIEGUES, A.C. (1996): Ecologia humana e planejamento em áreas costeiras. São Paulo: NUPAUB/USP.
FERREIRA, L. (1998): A questão ambiental. São Paulo: Boitempo.
GUIMARÃES, R.P. (1986): Ecopolitics in the Third World: An Institutional Analysis of Environmental Management in Brazil. (Tese de doutorado). Connecticut: University of Connecticut.
HOGAN, D.J.; VIEIRA, P.F. [org.] (1992): Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp.
LEAL, M.C. et al. [org.] (1992): Saúde, ambiente e desenvolvimento, 2 vol. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco.
LEIS, H. (1996): O labirinto: ensaios sobre ambientalismo e globalização. São Paulo/Blumenau: FURB/Gaia.
MARTINE, G. (1993): “População, meio ambiente e desenvolvimento: o cenário global e nacional”, en G. Martine [org.]: População, meio ambiente e desenvolvimento. Verdades e contradições. Campinas: Unicamp.
MEYER, H. (1999): City and Port. Transformation of Port Cities: London, Barcelona, New York, Rotterdam. Utrecht: International Books.
MORAES, A.C.R. (1995): Os impactos da política urbana sobre a zona costeira. Brasilia: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.
MORAES, A.C.R. (1999): Contribuições para a gestão da zona costeira do Brasil. São Paulo: Hucitec.
RUSCHMANN, D. (1999): Turismo e planejamento sustentável. A proteção do meio ambiente. 4ª ed. Campinas: Papirus.
SACHS, I. (1993): Estratégias de transição para o século XXI.Desenvolvimento e meio ambiente. São Paulo: Studio Nobel/Fundap.
SANTOS, M. (2001): O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro/São Paulo: Record.
SUSTAINABILITY CHALLENGE FOUNDATION (SCF) (1994): Ist. International Programme on the Management of Sustainability. Selected Readings. Nijenrode Business School.
SUNKEL, O. (1984): La dimension ambiental en los estilos de desarrollo de América Latina. 2ª ed. Santiago de Chile: Cepal.
SUSSKIND, L.; FIELD, P. (1996): Dealing with an Angry Public: The Mutual Gains Approach to Resolving Disputes. New York: The Free Press.

Desenvolvimento Sustentável na Costa Brasileira