sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O biocombustível no Brasil

O biocombustível no Brasil

Rogério Cezar de Cerqueira Leite 
Físico, é professor emérito da Unicamp 
Manoel Régis L. V. Lea
Pesquisador do "Projeto Etanol"

As razões para o interesse pelos biocombustíveis são muitas e variam de um país para outro e também ao longo do tempo, sendo as principais as seguintes:
  • Diminuir a dependência externa de petróleo, por razões de segurança de suprimento ou impacto na balança de pagamentos;
  • Minimizar os efeitos das emissões veiculares na poluição local, principalmente nas grandes cidades;
  • Controlar a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.
A primeira razão acima foi a grande motivadora, após os dois choques de petróleo na década de 1970, que incentivou as nações importadoras de petróleo a buscarem alternativas para este insumo fóssil. Floresceram vários programas de desenvolvimento de energias renováveis, de economia de energia, de uso da energia nuclear, do gás natural e do carvão mineral. 
  • Este quadro se manteve até meados dos anos 1980, quando os preços internacionais do petróleo caíram a valores em torno de US$ 12 por barril e aí o interesse pelos substitutos de petróleo arrefeceu devido ao custo dos subsídios necessários para mantê-los no mercado.
Já nos anos 1970, a preocupação com a qualidade do ar nas grandes cidades e com os efeitos negativos das emissões veiculares nessa qualidade renovou o interesse pelos biocombustíveis. Os grandes produtores e usuários de álcool, os Estados Unidos e o Brasil, passaram a focar neste aspecto de uma forma séria e intensa, enquanto outros países, como o Japão e os da União Européia, mantiveram um interesse mais reduzido pelo assunto. 
  • A obrigatoriedade de adicionar componentes oxigenados na gasolina, para reduzir as emissões de monóxido de carbono e hidrocarbonetos, abriu mercado para o álcool, mas ele tinha de competir com outros oxigenados como o MTBE (Metil Tércio Butil Éter).
Na segunda metade da década de 1990, com a introdução da injeção eletrônica e do catalisador de três vias nos veículos automotivos, e a conseqüente redução drástica das emissões no escapamento, o efeito poluidor desses veículos deixou de ser uma grande preocupação mas continuou a motivar o uso do álcool. A competição entre o metanol e o etanol pelo mercado de álcool combustível terminou com a vitória total deste último.
  • Desde a década de 1980 os cientistas passaram a alertar os Governos sobre o fenômeno do aquecimento global, mostrando evidências cada vez mais convincentes de que a temperatura da Terra estava subindo a uma taxa maior do que a esperada pelos registros históricos, devido a ações do homem; a queima de combustíveis fósseis seria a principal causa desse fenômeno e os níveis de dióxido de carbono na atmosfera, o principal gás de efeito estufa, havia subido de 280 PPM (partes por milhão), índice que prevalecia antes da Revolução Industrial, para 380 PPM nos dias de hoje. 
A Convenção do Clima no Rio de Janeiro, em 1992, e a subseqüente assinatura do Protocolo de Quioto, em 1997, oficializaram essas preocupações com o clima global e estabelecerem responsabilidades para as nações signatárias da Convenção Quadro Sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas.
  • O Protocolo de Quioto foi finalmente ratificado em março de 2005, estabelecendo metas quantitativas para a redução da emissão de gases de efeito estufa pelos países desenvolvidos, referentes aos níveis de 1990. O primeiro período de verificação será de 2008 a 2012, e os países em desenvolvimento estão fora dessa obrigatoriedade.
Nos últimos três anos os preços do petróleo subiram sensivelmente, passando do patamar de US$ 20-30 por barril para um novo patamar entre US$ 50-70 por barril. As instabilidades políticas e sociais nas regiões produtoras e a convicção de que o pico de produção será atingido nos próximos dez ou vinte anos estão mantendo a volatilidade dos preços desse insumo estratégico.
  • É nesse quadro que os biocombustíveis vão se inserir no mundo com, no mínimo, uma dupla responsabilidade: ajudar a reduzir a emissão de gases de efeito estufa e substituir parcialmente o petróleo para alongar sua vida útil.
Hoje, os biocombustíveis em uso comercial no mundo são o etanol e o biodiesel, nos níveis de 50 bilhões de litros e 5 bilhões de litros por ano, respectivamente.

Etanol no Brasil:
  • O etanol vem sendo usado como combustível no Brasil desde os anos 1920, mas foi somente com o advento do Proálcool, em novembro de 1975, que seu papel ficou claramente definido a longo prazo, permitindo que o setor privado investisse maciçamente no aumento de produção. 
A motivação do governo para lançar o Proálcool foi o peso devastador da conta petróleo na balança de pagamentos do país, que importava na época mais de 80% do petróleo que consumia.
  • A produção anual, que estava em torno de 600 milhões de litros, aumentou rapidamente e ultrapassou a meta do programa, de 10,6 bilhões de litros anuais, em menos de dez anos. Com o aumento da produção interna de petróleo e com a queda de seus preços internacionais, o governo perdeu o interesse pelo programa, que passou a navegar à deriva. 
Os subsídios foram reduzidos e o etanol hidratado perdeu competitividade perante a gasolina; a obrigatoriedade do uso do anidro na mistura com a gasolina e a velha frota de carros a álcool mantiveram o programa vivo, apesar da falta de apoio do governo. 
  • Um ponto vital foi a manutenção da infra-estrutura de abastecimento — o etanol estava disponível em mais de 90% dos 30 mil postos de combustível instalados no país.
Em 2001 o mercado de etanol no Brasil foi totalmente desregulamentado, passando a prevalecer a livre competição entre os produtores. O governo não mais estabelecia preços nem cotas. Felizmente, em 2002 começou uma nova elevação nos preços internacionais do petróleo, e o conseqüente aumento de preço da gasolina, que trouxe de volta o interesse do consumidor pelo carro a álcool — as vendas antes não deslanchavam pelo receio que tinha a população quanto à garantia de abastecimento. 
  • Percebendo isso, as montadoras de veículos passaram a trabalhar no desenvolvimento do motor flexível ao combustível (FFV — Flex Fuel Vehicle), que poderia operar com gasolina, etanol ou qualquer mistura desses dois combustíveis. O uso de gasolina ou etanol nesses veículos depende do preço relativo entre eles, considerando que a equivalência em quilometragem é de 0,7 litro de gasolina por litro de etanol.
Analisando a situação do etanol combustível hoje no Brasil notam-se os seguintes pontos marcantes:
  • O etanol representa cerca de 40% dos combustíveis para motores leves (ciclo Otto);
  • Não existem subsídios para o etanol e, mesmo assim, ele consegue competir com a gasolina; os custos de produção foram reduzidos em cerca de 70% desde 1975;
  • O Brasil é auto-suficiente em petróleo, importando diesel e exportando outros derivados;
  • Cerca de 50% da cana moída no Brasil é usada para produzir etanol;
  • Há uma crescente expansão do mercado externo tanto para açúcar como para etanol, sendo difícil hoje identificar o real potencial do mercado mundial de etanol;
  • O setor sucroalcooleiro está em franca expansão: existiam 320 usinas em 2001, hoje já são 360, e 120 projetos estão em vários estágios de execução (expansões e novas usinas);
  • O Brasil é o maior produtor de etanol de cana no mundo, mas, em produção total, fica atrás dos Estados Unidos, que usa o milho como matéria-prima;
  • A tecnologia de produção de etanol no Brasil está totalmente madura, permitindo ainda alguns ganhos de produtividade na área agrícola e pouca coisa na área industrial; existem variedades de cana geneticamente modificadas que permitiriam grandes reduções nos custos de produção, embora não possam ser utilizadas pela morosidade do processo de liberação.
Com tudo isso, pode-se afirmar com muita convicção que a produção de etanol no Brasil está perfeitamente consolidada, podendo crescer ainda na substituição da gasolina caso a volatilidade dos preços do petróleo continue. Assim, o Brasil poderá vir a ser um grande exportador de etanol e gasolina.

O biocombustível no Brasil

Biodiesel no Brasil:
  • O desenvolvimento de substitutos do diesel foi tentado com muito afinco no início do Proálcool, como forma de reduzir ainda mais o consumo de petróleo e de manter o perfil de produção de derivados de acordo com a capacidade das refinarias do país. O processo fracassou por várias razões, entre elas os baixos preços do diesel na época, e as atividades cessaram. 
Com isso, a substituição parcial da gasolina pelo etanol causou desequilíbrio no perfil de refino de petróleo com reflexos na qualidade do diesel, provocando a necessidade de importar cerca de 20% de diesel consumido e exportar parte da gasolina produzida. 
  • O governo voltou a se interessar pelo biodiesel quando sua produção e consumo passaram a crescer na Europa, principalmente na Alemanha; também vislumbrou uma forma de fortalecer a agricultura familiar e assim melhorar a inclusão social, um problema muito sério no Brasil. Em 6 de dezembro de 2004 foi lançado oficialmente o Programa Nacional de Produção de Biodiesel, regulamentado pela Lei nº- 11.097, de 2005. 
O programa estabeleceu a obrigatoriedade do uso de 2% de biodiesel misturado ao petrodiesel a partir de 2008 e de 5% a partir de 2013; esta última data poderá ser antecipada dependendo da capacidade de produção instalada. Para favorecer o pequeno produtor, o programa definiu impostos diferenciados dependendo da origem da matéria-prima, sendo o maior desconto para a produzida por pequenos produtores no Norte-Nordeste. 
  • O grande produtor não teria benefícios fiscais, sendo a taxação igual ao do diesel mineral. O produtor de biodiesel, para receber os benefícios fiscais no preço de venda nos leilões, precisa possuir o Selo Social que assegura o atendimento dos requisitos impostos pela lei.
A grande esperança do governo em viabilizar a produção de óleos vegetais e biodiesel na região semi-árida do Nordeste é a cultura da mamona. Alguns projetos foram implantados nessa linha, merecendo destaque a unidade da Brasil Ecodiesel com a usina em Floriano e a plantação de mamona em Canto do Buriti, ambas no Piauí. 
  • A usina tem capacidade de produção de 7 milhões de litros por ano usando o processo de transesterificação. O módulo agrícola foi implantado inicialmente em 5 mil hectares, divididos em lotes de 25 hectares por família; cada família deverá cultivar mamona consorciada com feijão, ou outra cultura da escolha da família, em quinze hectares. 
Os dez hectares restantes serão usados para área de preservação e outros cultivos da família. No final da implantação do projeto serão 40 mil hectares plantados. Cada módulo de produção agrícola contará com ampla infra-estrutura, com escola, posto médico e área de lazer.
  • O projeto, aparentemente bem estruturado, com um bom conceito de inclusão social e tecnologia industrial de boa qualidade, não está operando como planejado, pois a matéria-prima utilizada tem sido principalmente a soja importada da região 
Centro-Oeste. Isso prova que não bastam boas intenções e que uma realidade não pode ser desfeita simplesmente com o estabelecimento delas. Tudo indica que faltou tecnologia na parte agrícola do projeto. A mamona recebeu muito pouca atenção nos últimos trinta anos e de repente foi lançada como a grande solução para a inclusão social via agricultura familiar. 
  • Há apenas duas variedades comerciais para as condições nordestinas e as técnicas de cultivo e manejo não parecem estar suficientemente desenvolvidas, sem contar com a falta de preparo e treinamento dos agricultores. 
A mamona precisará de pelo menos mais dez anos, com base na experiência com outras culturas, para ser desenvolvida como uma opção comercial de matéria-prima para a produção de biodiesel. Isso vale também para outras culturas ainda sem experiência de plantio comercial, como o pinhão-manso.
  • A soja, com uma tecnologia agrícola já bem desenvolvida e perto de 25 milhões de hectares plantados no país, é hoje a principal matéria-prima na produção de biodiesel. 
É uma opção ruim do ponto de vista do balanço energético, da ocupação de terras e da inclusão social, mas é a melhor do ponto de vista econômico e de disponibilidade, tendo, portanto, predominado sobre as outras alternativas de matéria-prima. Todo país que inicia um programa de biocombustíveis sempre se baseia nas opções já em pleno desenvolvimento comercial. 
  • Assim foi no Brasil com o etanol de cana-de-açúcar, nos Estados Unidos com o etanol de milho e o biodiesel de soja, na Europa com o etanol de trigo e beterraba e o biodiesel de colza. Uma cultura exótica ou pouco conhecida precisará de tempo e recursos para ser desenvolvida como opção comercial.
O Futuro dos Biocombustíveis:
  • Como já foi mencionado acima, a maior motivação para o uso de biocombustíveis é seu potencial de reduzir a emissão de gases de efeito estufa (GEE) de uma forma sustentável. No entanto eles terão de competir com outras formas de energia renováveis e também com tecnologias de sequestro de carbono, como a injeção e o armazenamento de dióxido de carbono em poços exauridos de petróleo. 
A economia de energia é uma alternativa de redução de GEE que terá de ser utilizada, mas enfrentará dificuldades em alguns casos por exigir mudança de hábitos, como o uso do veículo particular para transporte. 
  • Dessa forma, torna-se muito importante o balanço energético da cadeia produtiva do biocombustível e a quantidade de gases de efeito estufa emitidos na sua produção, incluindo as fases agrícola e industrial. 
Nesse aspecto, o etanol de cana-de-açúcar tem se mostrado a melhor opção até o momento, pois consome 1 unidade de energia fóssil para 8 unidades de energia renovável produzida; para o etanol de milho ou de trigo essa relação é de 1,1 a 1,5 (dependendo de como se leva em conta o valor energético dos subprodutos). 
  • Para o biodiesel, esse balanço indica que a relação entre a energia renovável do biocombustível e a energia fóssil gasta na sua produção só excede o valor 3 para o caso do dendê.
Outro ponto importante na sustentabilidade do biocombustível é a necessidade de terras para produzi-lo. Comparando o etanol de cana-de-açúcar com o biodiesel de mamona vemos que um hectare cultivado com cana produz mais de 6 mil litros por ano de etanol, ao passo que esse mesmo hectare plantado com mamona proporciona apenas 500 litros de biodiesel. 
  • Dessa forma, os 13 bilhões de litros de etanol combustível que substituem cerca de 40% da gasolina utilizam pouco mais de 2 milhões de hectares de cana; para substituir 40% do diesel consumido no Brasil, ou seja, 16 bilhões de litros, seriam necessários 32 milhões de hectares plantados com mamona, o que representa cerca da metade da área cultivada no nosso país.
Toda a produção mundial de biocombustíveis se baseia hoje nas chamadas tecnologias de primeira geração, o que significa produção de etanol a partir de açúcares ou amidos (cana, beterraba, milho, trigo, mandioca) e biodiesel de óleos vegetais ou gordura animal (soja, mamona, dendê, sebo, óleo de fritura). 
  • Estão em desenvolvimento várias tecnologias que utilizam os materiais lignocelulósicos como matérias-primas (resíduos agroflorestais, madeira de florestas plantadas, culturas energéticas de curto ciclo, lixo urbano), que são mais baratos, mais abundantes e podem ser produzidos nas mais variadas condições de solo e clima.
A cana-de-açúcar será beneficiada com essas tecnologias emergentes, pois além do açúcar ela produz uma grande quantidade de fibras na forma de bagaço e palha; atualmente quase todo o bagaço é usado para fornecer a energia de que a usina precisa e a palha é queimada antes da colheita. 
  • Com a redução do consumo energético nas usinas, o fim das queimadas e o início do recolhimento da palha, a produção de etanol por tonelada de cana processada poderá crescer em torno de 50% com a produção de etanol dos resíduos da cana.
O etanol já é hoje um grande sucesso no Brasil com substituto da gasolina e seu futuro é promissor com o advento das tecnologias de segunda geração. O biodiesel ainda tem um árduo caminho pela frente com as tecnologias de primeira geração e o futuro dependente de outras matérias-primas para as tecnologias de segunda geração; não devemos desanimar, mas não há razões para ufanismo quando se trata de biodiesel.

O biocombustível no Brasil